Henriqueta Lisboa: ressonâncias de uma leitura


Por Márcio de Lima Dantas 



Para Daura, prima minha

Uma das maiores alegrias que tive na minha vida foi quando um funcionário da Poty Livros me ligou dizendo que tinha conseguido o volume número I das Obras Completas: poesia geral (1929-1983) da poetisa mineira Henriqueta Lisboa. Esse acontecimento me evocou a personagem do conto "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, cuja alegria maior foi conseguir emprestado, após se submeter a uma série de perversas humilhações de uma amiguinha, o livro de Monteiro Lobato As Reinações de Narizinho

Diferente da personagem, menina pobre ávida por leituras, meses antes fizera eu o pedido à livraria, mais uma das inúmeras tentativas impetradas de localizar alguma coisa da poetisa, pois tudo o que lera fora através de antologias. Sempre que ia a algum sebo ou livraria repetia inexoravelmente as mesmas palavras: - Você teria alguma coisa da Henriqueta Lisboa? Mas eu vou segredar uma coisa; agora, não digam a ninguém: hoje em dia não se pode confiar nada. É que eu também, de certa maneira, tenho provado dessa coisa doceamarga que é a felicidade clandestina. É uma constante na minha vida.

Voltemos à Henriqueta Lisboa, que é muito melhor, pois se trata de literatura, não disso que desde sempre convencionaram indigitar como vida.

Nunca consegui ler a poetisa mineira sem um certo sentimento de...ansiedade? Foi essa palavra que me veio aqui apor, embora antes tenha passado por minha cabeça botar angústia, porém esta é uma coisa que se expressa mais, digamos, fisicamente, na medida em que o corpo denuncia, mesmo sem querer, o estado de ansiedade: respiração ofegante, inquietude, impaciência, ou seja, somatiza-se um estado mental de maneira bem tangível. Já a angústia tem a nobreza das coisas relacionadas ao espírito. Angústia detém a gravidade do nobre, requer circunstâncias, auras de filosofias e especulações intelectuais. Por isso preferi ansiedade, que é o sentimento causado pelas sucessivas leituras dessa poetisa pouco lida no país, mas que é uma das mais altas vozes da poesia em língua portuguesa de todos os tempos.

Não saberia, juro, dizer direito porque sua poesia me chega assim, bouleversando eventos já vivenciados sem que eu tivesse tido a coragem ou a sensibilidade de saber.

Explicar plausivelmente essa agitação íntima que me causa a leitura de uma escritora é uma tarefa complicada, mesmo por que eu só compreendo os poemas de Henriqueta Lisboa após repetidas leituras nas quais vou grifando com um marca-texto verde os versos que julgo mais bonitos, axiomáticos, aforísticos, ou que detenham uma metáfora original. E em se tratando de articular metáforas, meu Deus!, quem poderia superar a mulher do estranho e corajoso Flor da morte?

Voltemos à ansiedade (até parece que vou intercalando digressões para evitar encarar de frente a vala onde tombam as belas imagens em suas despóticas fulgurações). Quem sabe se essa coisa que eu nomeio ansiedade não seria uma espécie de êxtase estético causado por uma poesia que fala da morte com tanta delicadeza, propriedade e, sobretudo, beleza? Sim, o êxtase emanado do contato com a genuína poesia parece deter na sua auréola de imagens um certo incômodo, visto que mergulha suas mãos em concha no que temos de mais recôndito, trazendo para a luz aquilo que repousa quieto, que não faz a mínima questão de vir à tona, que nos presenteia essa tranqüilidade derramada no rosto e nos faz percorrer os dias com uma relativa facilidade. E se assim o é, falando sério, eu não gostaria de gostar da Poesia. Então, talvez se possa falar numa inevitabilidade, causada que foi por uma história de vida com suas esquisitas formações autônomas, assim como se fossem metais gestando-se no âmago da terra, ou então como seixos de formas inusitadas que vão sendo rebolados nas margens de riachos. Que culpa se outorgaria à pérola malformada?

No entanto, quando de uma fortuita retirada do livro da prateleira de aço, folheando-o aleatoriamente, como se fosse uma Bíblia plena de possibilidades oraculares, colho um dístico de luz que se desprende dos versos: uma bela, diáfana e ousada metáfora, e eis que a angústia, digo, ansiedade aflora, permitindo-me habitar por um incômodo vasculhar de áreas deixadas em repouso da minha alma.

É com desvelo que retorno o livro de capa cinza com frisos roxo-claros, espécie de sudário envolvendo tantos poemas dedicados à morte, para seu lugar na prateleira. Que posso eu fazer senão retornar de vez em quando para provar desse esquisito sentimento despertado por uma poesia detentora de um refinamento singular e que se alimenta do que não sei explicar em mim?

* Uma primeira versão deste texto foi publicada no Jornal de Natal e aqui revisada.



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