Cidade pequena, cidade grande, de Jack Kerouac


Por Rafael Kafka



Cidade pequena, cidade grande
ainda não é On the road, mas aqui já vemos uma série de elementos que irão permear não somente a obra mais famosa de Jack Kerouac. Neste singelo romance que mostra as relações entre Galloway e Nova York na primeira juventude do autor, a serendipidade se mostra um ingrediente fundamental para entendermos a poética do chamado “pai dos beats”.

A história foca na vida dos Martin, liderados pelo pai bonachão George, figura claramente inspirada na figura paterna de Kerouac, uma das tragédias familiares que permeariam boa parte da existência e do trabalho do escritor. Ao lado da esposa, Martin tem uma família de nove filhos, todos com personalidades muito fortes, similares em pontos importantes, mas também bem marcadas em pontos centrais. Podemos dizer que Kerouac se dividiu nessas personalidades para tecer um belo exemplo de auto ficção, em especial nos irmãos mais velhos, Peter, Joe e Francis.

De Peter, há a paixão pelo futebol americano, na qual a personagem tem uma carreira promissora abandonada em um lapso de razão que o leva a pensar se estava vivendo a vida real e plena em todos os sentidos. Joe remete a Sal Paradise, herói vindouro para quem leu Road primeiro, com seu desejo de viver a América em sua completude, cruzando o país ver as paisagens naturais humanas nele existentes. Por fim, Francis remete aos questionamentos existenciais profundos exibidos pelo autor em seus textos e seria um lado mais taciturno e fechado, mais melancólico, uma voz existencialista dentro de um romance cujo foco é o brilho ingênuo da existência.

O ar serendipitoso do romance foca justamente na constante descoberta da existência dentro do seio de uma família unida em todos os momentos. O lado conservador de Jack Kerouac neste romance dar vazão a um brilhantismo que foca na beleza do lar, da família, como elemento de coesão do ser. Em um mundo entre guerras, a casa de Galloway, a qual terá de ser deixada de lado por conta de sérios problemas financeiros, é um ninho protetor para os jovens, os quais acabam sentindo profunda dor em ter de sair dali. Mesmo Francis, com seu ar taciturno, e Elizabeth, com seu desejo de liberdade, não conseguem ocultar o alívio de saber que poderão sempre voltar para os braços calorosos de George e Marge em caso de necessidade.

Lendo On the road, vemos esse amor quente e edípico, podemos dizer assim, na relação de Sal com Dean Moriarty. Ambos são figuras problemáticas em busca de uma plenitude essencial perdida em algum ponto de suas existências não muito claro para eles. Sal, assim como Joe e Peter, tem um espaço pacato para onde voltar, a casa da tia, onde pode colocar no papel a descarga emocional profunda que é sua vida na estrada, a qual começa logo após a morte de seu pai. A desconstrução da família Martin ao longo de Cidade pequena, cidade grande é uma espécie de queda ao abismo do ser humano que deve se ver sem seu linho protetor em um mundo cada vez mais complexo e absurdo.



A escrita de Kerouac pouco se preocupa em discutir política de forma mais concreta, mas ao redor de um ser nauseado com a pós-modernidade fragmentada vemos, como é Peter Martin, vemos os grandes dilemas do sistema capitalista, que Kerouac tanto enfrentou com sua performance chocante sem, contudo, combater e entender as bases econômicas. Se em On the road, vemos Paradise em busca desse encontro consigo mesmo no movimento constante e no amor por Dean, neste primeiro romance singelo, extremamente sentimental em alguns momentos, vemos o começo de uma poética de auto ficção cujo maior foco é o encontro consigo mesmo em um mundo no qual as coisas cada vez mais estão fragmentadas, espalhadas por aí.

Em certos aspectos, Cidade pequena, cidade grande capta melhor o movimento da vida americana mais intensamente que Road. Diante de nós, há a existência pacata de um povo americano que como diz George Martin, já doente e sem sua gráfica – indignado com a guerra vindoura – quer apenas batalhar para ter uma vida decente com sua família. Durante a história, veremos personagens abrindo mão de sonhos intelectuais e acadêmicos com o mero intuito de criar um empreendimento para ajudar a família, pois é importante se defender esse ninho protetor.

A figura feminina é santificada dentro desse romance, em especial a da mãe, Marge, ainda mais na visão do religioso Mickey, que em uma missa de natal a vê como uma espécie de Virgem. Mulheres aqui são esteios familiares com seu ar sereno, zen, sintonizado com a paz essencial da existência, ao contrário dos homens, sempre perdidos em sua solidão desconexa. Porém, figuras como Elizabeth revelam que mesmo o conservadorismo de Kerouac se deleitava com posturas que feriam um pouco a lógica submissa do comportamento feminino mais tradicional; afinal, Liz é uma moça que decide sair de casa para se casar e ter uma liberdade maior, numa época em que o casamento ainda era imposto por demais aos filhos pelos pais. Mesmo dentro de padrões bem comportados, as personagens de Kerouac assumem em maior ou menor grau um ar de transgressão.

Um elemento interessante na obra de Jack é justamente esse desejo de transgressão o qual nunca se tornou pleno, com obras nas quais os maiores atos de rebeldia estão permeados de um profundo sentimento de religiosidade, não aquela proferida por Mário de Andrade em famosa carta a Carlos Drummond de Andrade – de amor pleno à vida -, mas uma mais tradicional de profundo temor a Deus.       

Não à toa, nos diários de trabalho, os quais pretendo ler em breve de forma completa, as passagens teológicas são profundamente marcadas e presentes, revelando toda a dimensão cristã de Jack, que mesmo nas desventuras em busca do IT em Road se manifestará. O IT na verdade é justamente esse encontro primordial com Deus, um deus zen, um deus cuja salvação se dá pelo conhecimento e pelo contato consigo mesmo nas revelações cotidianas e absurdas da existência. Infelizmente, porém, a culpa, tradicional elemento cristão, se fará presente na vida e obra do pai dos beats, o qual poderia ir mais além em sua transgressão, assumindo mesmo uma agenda política mais consistente, pois por mais que literatura seja acima de tudo prazer estético é meio complexo aceitarmos que o mesmo autor que influenciaria toda a nossa subcultura apoiaria, por exemplo, a ação no Vietnam.

Assim sendo, poderíamos incluir Mickey como mais uma personagem com profundos traços comportamentais do autor, revelando toda uma dimensão crente que se concretiza mais ainda nos eventos especiais da noite de natal, cuja troca de presentes é algo importante demais para o menino, o qual a todo instante assume uma postura de culto.

Cidade pequena, cidade grande se mostra um grande romance de estreia por criar existências extremamente vivas em suas manifestações de ser que fazem parte de uma interessante reflexão acerca da beleza do lar americano, uma beleza fugaz, porém, que com seu sumiço revela ao ser humano o absurdo da modernidade líquida e tardia. Ao mesmo tempo, já temos aqui o exemplo da engenhosidade de seu autor em utilizar diversos personagens juvenis para expor cada uma de suas facetas, conseguindo até mesmo em certos momentos usar bons elementos de polifonia, já que cada um dos irmãos possuem traços e princípios muito específicos.

Basta analisarmos o otimismo de Peter com o ar mais sombrio de Francis e o desejo de aventura de Joe e os diferentes matizes de cada um desses traços presentes em cada um deles para entendermos como em sua obra inicial Jack já consegue criar um profundo diálogo consigo mesmo a partir de situações concretas desenvolvidas por sua imaginação. Ficam evidentes nesse romance o desejo do autor em trabalhar o amor à vida por meio dos encontros casuais que levam a descobertas sobre o que há de belo na existência, ao mesmo tempo em que não podemos esquecer do terror inerente a ela com o fluir do tempo e a intenção de tecer um diálogo consigo mesmo e suas diversas facetas: o espírito religioso que busca a paz, o IT, em algum local pleno, ermo e quente na existência, e o espírito aventureiro para quem somente o movimento frenético, do corpo e da caneta – ou da máquina de escrever – é o que importam.

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