Por não recear o olhar penetrante: desconstruindo o cenário do primeiro cinema

Por Wagner Silva Gomes


Studio Méliès


A história do cinema registra que os primeiros filmes eram gravados em uma única cena em plano geral.  A câmara era afixada de frente para o cenário, não captando assim os movimentos e detalhes da cena. Até por isso os franceses responsáveis pelas primeiras películas chamavam o roteiro de cenário. Com isso, o cinema tinha como base a linguagem teatral, que é construída ainda hoje apoiada na recepção da plateia (público) frente ao palco (atores e cenário).

Vitor Manuel Aguiar e Silva, em seu livro Teoria da Literatura, diz que o drama (teatro) é baseado na ação, ou seja, nas tensões momentâneas e imediatas entre os sujeitos. E isso é sugestivo porque o desafio que levou o primeiro cinema a progredir foi justamente se pensar na desconstrução da cena (do ilusionismo de Méliès, passando pelos cem olhos dos construtivistas Russos, ao travelling de Griffith e as inovações contemporâneas). Para isso, era preciso sair do caráter teatral que trazia os planos conjuntos, com atores e cenários de fundo, que eram carregados de informação.

Dessa maneira, se levar em conta que um dos preceitos da lírica (poesia) é aproximar os textos da pintura, pois "a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se à distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante", como reza o clássico argumento de Horácio, pode-se considerar, também com Vitor Manuel Aguiar e Silva, que a exploração do cenário, adentrando-o de forma minimalista, está nas dimensões do "eu" poético, isto é, no subjetivismo que leva os sentimentos e as sensações refletirem os espaços.

Assim, o plano geral foi fragmentado pelo subjetivo, adentrando com a câmara a investigação dos sentimentos dos atores, o que leva às sensações que geram efeitos psíquicos e corporais de caráter universal. É curioso que o cinema europeu, mais especificamente o francês, ainda explore os cenários com que Vitor Manuel Aguiar e Silva chama de caráter mediato, ou seja, quando se estende o tempo de foco no sujeito, como no filme Amor (Michael Haneke, 2012) nos tons frios, na reciprocidade ora inativa, ora de urgência de vida do casal de idosos, que são refletidos também na luminosidade por compensação destacando o escuro, seja do rosto ou dos cômodos da casa, a solidão, no close-up, a pequenez da vida, no plongée, e a grandiosidade da mesma, no contra-plongée.

Com isso, constata-se que o cinema foi se aproximando cada vez mais da literatura, criando assim novos códigos de linguagem adaptados para a tela. O diretor português Manoel de Oliveira utiliza bastante os planos gerais demorando nas cenas refletindo assim a estética do primeiro cinema. A impressão que se tira dos seus filmes é de que ainda que no contemporâneo tenha surgido novos códigos a história familiar ainda guarda sua base patriarcal, as paisagens têm caráter monárquico, as pessoas sozinhas ficam perdidas nas paisagens dos grandes planos. Enfim, o autor utilizando bastante a estética do primeiro cinema cria filmes pertinentes para se pensar o contemporâneo.


Referências

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
GOMES, Wagner Silva. Objeto palavra: um vagar entre matéria e pensamento (na poesia de Casé Lontra Marques). Trabalho de conclusão de curso, UFES, 2011.
HORÁCIO. Arte poética. Tradução de R. M. Rosado Fernandes. Lisboa: Editorial Inquérito Limitada, 1923.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1968.

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