O sentimento da leitura

Por Julien Gracq

“Sem título”, Andy Warhol e Jean-Marie Basquiat, acrílico e óleo, coleção particular, 1985. 




A partir do momento em que há um público literário (isto é, desde que uma literatura existe) o leitor, colocado na frente de uma variedade de escritores e obras, reage de duas maneiras: por um gosto ou por uma opinião. Colocado frente a frente com um texto, o mesmo estalo interior que acontece em nós, sem regra e sem razão, no encontro de um ser, vai se produzir no leitor: ele “gosta” ou ele “não gosta”, é ou não é coisa de seu interesse, ele experimenta ou não experimenta, no decorrer das páginas, este sentimento de leveza, de liberdade aliviada e, entretanto, absorvida pouco a pouco, que se poderia comparar com a sensação do ciclista aspirado na agitação de seu pelotão, e, com efeito, no caso de uma conjunção feliz, pode-se dizer que o leitor cola na obra, vem preencher de segundo em segundo a capacidade exata do vácuo de ar cavado pela rapidez voraz da obra, forma com ela, no mesmo vento de páginas viradas, este bloco de engrenagem lubrificada e sem falha da qual a lembrança, assim que a última página veio brutalmente “tirar o fôlego”, nos deixa tontos, um pouco vacilantes no nosso impulso, como refém do começo de uma náusea e desta sensação tão peculiar das “pernas bambas”. Qualquer um que leu um livro desta maneira se mantém ligado a esta experiência por um forte vínculo, uma espécie de aderência, e algo parecido com o sentimento vago de ter vivido um milagre: no meio de uma conversa cada um saberá reconhecer no outro, ainda que seja apenas por uma entonação particular da voz, este sentimento quando ele se expressa, com, às vezes, os mesmos contornos e o mesmo pudor que o amor: se uma certa ressonância se encontra, dir-se-ia que se tocam dois fios eletrificados. É este sentimento, e somente ele, que transforma o leitor num seguidor fanático, não deixando (e seja, talvez, o sentimento mais desinteressado que exista) de compartilhar com seu entorno a sua emoção singular; nos todos conhecemos estes livros que nos queimam as mãos e que a gente semeia como se fosse por encantamento – nos os compramos umas meias dúzias de vezes, sempre contentes de não vê-los serem devolvidos. Cinquenta leitores deste tipo, vibrando sem parar no seu entorno, são também portadores do vírus contagioso, são suficientes para contaminar um vasto público: é preciso somente algumas décadas, às vezes um pouco mais, geralmente muito menos: a glória de Mallarmé, como se sabe, não teve outro veículo – cinquenta leitores que morreriam por ele.

*


Este é um excerto de La Littérature à l'estomac, ensaio publicado por Julien Gracq em janeiro de 1950 na revista literária Empédocle; em fevereiro do mesmo ano, saiu editado em livro pelas edições José Corti. Uma década mais tarde, incluído na coleção Preferences. Trata-se de um texto em que Gracq atira contra os costumes literários vigentes desde o período pós-guerra; no centro de atenção, os prêmios literários, a corrida pela fama, a preocupação com uma carreira e o que se convencionou tratar – na França e depois fora do país – como República das Letras.

Em “O sentimento da leitura”, a parte deste sistema visada por Julien Gracq é o público leitor, observando-o em sua relação com o literário, desfigurada, como se lê, pelo risível e problemático lugar do que poderíamos designar como , algo que se, era uma particularidade notada nos meios literários franceses do tempo do ensaísta, parece ter se transformado num mal na atual era das redes sociais, quando, muitas vezes o livro é mais um objeto de posse, um estatuto de exposição e uma via de acesso na primeira fila para o acesso ao escritor. Tal desfiguração, claro está, afeta totalmente o que, antes de tudo, é essencial: o convívio com os livros pela leitura. 

Julien Gracq não terá deixado de ser afetado pelo que se fez severo crítico; basta citar que, um depois da publicação de La Littérature à l'estomac, o júri do Prêmio Goncourt, o mais prestigiado galardão das letras francesas, o reconhece por Le Rivage des Syrtes; obviamente que, fiel aos princípios, recusou o prêmio, o que parece em nada o colocou à distância do modus operandi da República, visto que, a decisão foi apenas uma fagulha para toda uma expansão do renegado sensacionalismo.


* Tradução de Rafa Ireno a partir das Œuvres complètes (p.525-526)


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