O libertino moderado

Por Juan Claudio de Ramón


Cocanha. Pieter Bruegel


 
Existe um problema com a libertinagem e consiste em saber se somos a favor ou contra. É um ideal válido e alcançável? Depende do que se entende por libertino, diremos. Vamos pensar em todos os seus nomes: hedonista, dissoluto, depravado, desordeiro, vicioso, pervertido, canalha, festeiro etc. Cada um deles designa um grau de excesso que merece um julgamento diferente. Admiramos o amigo sedutor que conhece os corpos indistintamente, cada noite uma perfeição diferente; nós o imaginamos transbordante de alegria e secretamente o invejamos; mas basta imaginar uma presa abandonada, um cônjuge traído, para que certo verme comece a furar a nossa consciência. Mais um delito e nos separamos; um limite ultrapassado: nojo. Mas onde está esse limite? Existem cinismos e crueldades que nos divertem. Outros que nos enojam. Entre eles há toda uma gama de perversões que levantam dúvidas: polegar para cima ou polegar para baixo? E, supondo que soubéssemos onde colocar a linha, quem a traçou? Osentinela de plantão ou nós? Vi na televisão um anúncio de um hotel em Las Vegas que oferecia just the right amount of wrong (“a quantidade justa de pecado”). Achei que era um lema inteligente e desafiador: apela ao vício e à responsabilidade ao mesmo tempo. É o que queremos: um vício administrado em doses homeopáticas: pecamos mais à vontade sabendo que o mal não deixará rastros no corpo.
 
Dúvidas, dúvidas. O melhor será recorrer a testemunhos da época de ouro em que o libertino cunhou o seu prestígio. O ladino Talleyrand já diz que quem não fez amor no Antigo Regime não conhece a alegria de viver. Portanto, vamos consultar a voz autorizada da Enciclopédia: “Libertinagem é o hábito de ceder ao instinto, que leva aos prazeres dos sentidos; não respeita os costumes, mas não parece confrontá-los; [...] está a meio caminho entre a volúpia e a depravação; […] não exclui talento nem caráter agradável”. A meio caminho? Isso não exclui o talento? Onde encontramos, Diderot? Vemos que os enciclopedistas também não eram claros sobre isso: não quiseram aceitar ou desaprovar; certamente porque todos eles experimentaram mais de uma vez, e mais de duas, as delícias da devassidão. O que mais o sorriso perverso de Voltaire pode significar em todos os seus bustos e retratos, com ou sem peruca?
 
Aí está o busilis: a mesma dificuldade teórica que temos para apreender o conceito de libertino, é a mesma dificuldade prática que encontramos para regular em nossas próprias vidas a dose de libertinagem com que viveríamos ou poderíamos viver sem culpa, ou tolerar nos outros. Difícil. Não podemos mais culpar as convenções, porque em nosso tempo, a menos que se seja um congressista americano ou a esposa de um devoto islâmico, quase tudo pode ser feito sem censura social. Mas a culpa é alguma coisa mais profunda do que o cinto pegajoso com o qual os inimigos do prazer, conhecidos em todas as épocas, desejariam nos embalsamar. Como a neurociência começa a suspeitar, a moralidade também é um instinto e há costumes que entram nele. Daí que fiquemos preocupados em calcular o que seja the right amount of wrong, como propõem os hoteleiros de Las Vegas. Um pouco mais e vamos nos machucar. Um pouco de menos e sairemos dessa vida ressentidos e com a sensação de termos nos tornado um tanto incautos.
 
O libertino não tem esse problema. Ele ousa das consequências sem dúvida ou medo, sem se preocupar com o que está por vir. Esse é o seu segredo. Como no delicioso romance libertino de Vivant Denon, para eles não existe amanhã, apenas a noite importa. No extremo oposto, Santa Teresa diz que a vida é uma noite em uma pousada ruim; não, querida Teresa, a vida pode ser uma noite perfumada, em jardins que olham para o Sena, em que se faz amor nas almofadas de uma cama de dossel. E você, Teresa de Cepeda, sabe, acrescentaria maliciosamente o libertino, por que outro motivo seu pai a colocaria em um convento? Como sabem Santo Agostinho e todos os santos, para quem a libertinagem foi o prólogo da virtude e do ascetismo. E é que existe uma dialética entre o moralista e o libertino. Ao contrário do que se possa pensar, o libertino não é um homem (ou mulher) sem um código ético. Tudo nele é instinto, exceto o fato fundamental de apostar no instinto. Essa é uma decisão reconsiderada, ou seja, ética. Houve um momento em sua vida em que se perguntou como seria a vida boa e decidiu que ser feliz é basicamente desejar o deleite dos sentidos. Não há vida se não houver maçã para morder. Mas não basta qualquer tentação. O libertino espera, domina, observa; ele retarda o gozo e o prolonga porque sabe que a satisfação é o azar do desejo. De sua parte, o moralista (e não estou me referindo ao embalsamador) precisa do libertino tanto quanto este precisa daquele: ambos são usados ​​para sondar o ponto certo da vida boa. Por isso não é estranho que em uma época sem moralistas, onde o cinismo é prescrito sem receita e códigos éticos porque foram reciclados em flexíveis estilos de vida, também não são libertinos dignos de nota. No máximo canalhas, e desses, em geral sem-vergonhas. Porque seria uma afronta ter Berlusconi, Clintons e Strauss-Kahn como indivíduos da mesma linhagem do Barão de Valmont.  
 
Isso me leva a outra questão: a libertinagem é possível hoje? Se o libertino se define pelo tabu que quebra, dificilmente o encontraremos, como no passado, na cama, já que todo escândalo há muito foi desativado (sim, até as revistas de moda pesam os prós e os contras do casamento aberto!) Isso não significa, é claro, que todos molhem o que quiserem; significa que pouco resta do que se envergonhar. O pecado é apenas mais uma mercadoria mas, se olharmos bem, este mundo seria um inferno para os libertinos clássicos, como aquele artista renascentista que descobre que a escultura que esculpiu para a posteridade foi miniaturizada e vendida em infinitas duplicatas na forma de um chaveiro em lojas em todo o mundo. E se, alternativamente, a licenciosidade é definida por seu desprezo pelo comum, por seu egoísmo, podemos pensar que nada é mais libertino do que nossa desonesta classe política — mais gangue do que classe — começando com as subespécies dos corruptos. Mas é furioso pensar em Bárcenas como um libertino. A auri sacra fames é uma paixão muito mais vulgar do que a honrosa e desesperada busca do prazer; quanto ao resto, como todos sabemos pelos romances, a primeira coisa que um libertino faz com sua fortuna é esbanjá-la à vista de todos, pagando a rodada, não correndo para escondê-la em num cofre suíço. Para os Bárcenas, Madoff et alii já temos outra palavra, e é ladrão.
 
Enfim, se o libertino se define pelo bom gosto em sua má conduta — pois já sabemos pela enciclopédia que a libertinagem não exclui talento ou elegância — mal tem a ver com essa era sentimental, niveladora e grosseira (digamos: democrática) em que não se concebe a possibilidade de que um gosto seja superior a outro — e, portanto, esse gosto, como a opinião, seja algo a educar. E não o veremos em um falanstério hippie, se ainda existir, porque não podemos imaginá-lo compartilhando um banheiro. Onde, então, estará o libertino de hoje? Ele voltou voluntariamente para sua jaula, morto de tédio e nojo por um mundo de orgias pagas, desfalque corporativo e bebedeiras à saída do colégio?
 
Ou talvez o libertino nada mais seja do que uma criatura imaginária sedutora, o golem que construímos com todos os pecados que não cometemos. Uma criatura que não deve se alimentar de fantasias. Suspeito que a depravação cansa e rende pouco. Afinal, o ideal libertino é a vida sem laços, já que todos os laços são uma margem limitada de liberdade. E não é possível viver sem vínculo, pois todo vínculo exige cuidado de si e do outro. Isso não quer dizer que não possamos, que não devamos, cometer excessos de vez em quando, sucumbir ao momento luciferiano e predatório em que só importa o prazer, experimentar os limites da liberdade, porque é isso também nos existe o fato de estar vivo. Por tudo isso, termino dizendo: libertinagem sim... mas com moderação. Como em tudo, por outro lado.
 
* Este texto é a tradução de “El libertino moderado”, publicado aqui, em Jot Down.

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