O primeiro dia do último inverno, de João Anzanello Carrascoza

 Por Sérgio Linard

João Anzanello Carrascoza. Foto: Arquivo Estadão (Reprodução).


 
Durante o processo de escrita de minha dissertação de mestrado (disponível aqui), dediquei uma parte de minhas leituras a textos contemporâneos brasileiros com intuito de tentar traçar, ainda que resumidamente, um panorama da produção literária do tempo presente no Brasil. Muitas leituras foram feitas. Umas boas, outras esquecíveis; umas concluídas com êxito, outras abandonadas pela metade.

Com a facilidade de publicar-se, proporcionada especialmente pelas grandes plataformas digitais, muita coisa chega a ver a luz do dia, mas nem tudo parece se sustentar sobre escrutínio de uma luminária noturna. Facilitou-se a publicação, mas a que custo? Talvez isso seja um debate para um outro texto. Neste, para não fugir do título que coloco, falo de uma das gratas surpresas dos idos tempos de mestrado: João Anzanello Carrascoza.

O escritor e professor paulista, já reconhecido pelos seus contos, teve sua estreia romanesca em 2013, na saudosa CosacNaify, com o título aos 7 e aos 40, atualmente reeditado pela Alfaguara. Por ser, no entanto, largamente conhecido por sua produção contística, julguei de melhor proveito falar sobre uma de suas narrativas curtas: O primeiro dia do último inverno, um conto publicado em 2014, exclusivamente de modo online com o selo “Formas breves” — um selo dedicado a livros digitais, com baixo valor de mercado, e que tem como mote entregar a leitores textos para serem lidos com mais brevidade.

O conto se ocupa de um enredo aparentemente simples: um casal maduro, que sairá de férias no inverno. O título anuncia, porém, que será o último. Um dos elementos mais interessantes de um conto — e o autor domina bem isso — é percebido na capacidade que a forma tem de, mesmo sendo curta, proporcionar reflexões múltiplas sobre aquela história, ao passo que, com somente algumas poucas páginas lidas, muito tem-se a pensar.

É interessante observar, por exemplo, que o título pode encaminhar-nos ao erro comum de imaginar que a história se passa no começo do inverno. Não. O texto repete por nove vezes que a história se passa em julho e, seja no hemisfério norte ou no sul, julho não demarca o início da referida estação. O dia primeiro que se marca não é, portanto, o do começo da temporada mais fria; é do início do período que culminará em um fim para aquele casal que, ao que apontam as primeiras páginas do conto, adentrou no cansaço da rotina a dois depois de uma longa convivência.

Mas o texto não fecha questão e isso é uma característica da produção literária de Carrascoza. Por ser a vida incerta e constantemente mutável, ao autor parece mais verossímil que aquilo que aconteça a seus personagens sigam este mesmo processo, o da mutação como certeza. Naquele dia de julho, naquele inverno específico “eles foram felizes — como nunca mais seriam”, o que não impede que eles permaneçam juntos, ainda que não plenamente felizes como naquele momento, afinal este casal maduro — retomando a caracterização que fiz acima — já superou a romântica ideia de que a felicidade na vida a dois seja uma constante.

Ainda que o conto não se comprometa em anunciar os nomes e muito menos a idade do homem e da mulher envolvidos na trama, suas falas e pensamentos anunciados por um clássico narrador em terceira pessoa demonstram que este casal não mais tem aquela preocupação de se estar ao lado d’O amor da vida, comumente observada em casais mais novos. Isso fica claro no momento em que, ainda em casa, antes de saírem rumo a uma viagem às montanhas, ela olha para ele e pensa: “não [é] o homem de seus sonhos, mas [é] o homem de sua realidade, e era esse homem, dolorido de vivências, que ela amava”. A personagem feminina demonstra não somente uma despreocupação em conseguir ao seu lado aquele amor idealizado nos moldes do tradicional romantismo, como também uma visão realista sobre o homem que está ao seu lado e, por extensão, sobre a própria relação da humanidade. Essa esposa não foge da constatação de que seu marido também está imbuído de traumas e de dores que fazem com que ele seja quem o é, tendo com ele uma convivência que é humana.




Em um período de Instagram, com amores que se unem e se sustentam mediante a qualidade das fotos, a quantidade de curtidas e pelos padrões de beleza que os envolvidos na relação podem imprimir no espaço da rede social, há de se reconhecer o árduo trabalho de Carrascoza para mimetizar um casal que, consciente de suas limitações e possibilidades, é real. O autor consegue com poucas palavras, apresentar um cotidiano que tem tudo para ser lido como enfadonho e cansativo ou, ainda, monótono, justamente por não se associar com o frisson da contemporaneidade. Tal característica da vivência atual cada vez mais apressada não é vista, por exemplo, na escrita do autor. São períodos subordinados, com as pausas esperadas para as antecipações dos adjuntos e com as explicações pertinentes para o desenrolar da história, deixando-se em estado de suspensão o desenlace final, a cargo do leitor para assimilar e interpretar.

É, então, com uma estética tradicional que o autor de Medo nos introduz em uma história que pensa sobre a relações amorosas a dois bem como sobre o processo de envelhecer juntos, partindo de uma ideia minimamente nietzschiana do que seja o amor. Para aquele casal, viver juntos é reconhecer que as incertezas, as fragilidades e as fatalidades fazem parte do cotidiano, e que essas situações, uma vez vistas com mais normalidade do que o que se prega, são construtos diários de um romance que se propõe saudável. Essa percepção fica nítida quando encaramos a seguinte passagem: “Ele, ao volante, ia com seus anos todos, já não tão pesados graças a ela, e ela, no banco ao lado, ia com todos os anos que desejava viver junto dele, e, assim avançavam, quilômetro a quilômetro [...]”. O avançar quilômetro a quilômetro em rumo ao destino final da viagem de inverno, parece uma metáfora perfeita para a construção contínua de um amor. Neste conto, o autor demonstra, dessa forma, que amar pode ser uma escolha diária, construída tijolo a tijolo, andada metro a metro e que tem seus pesos menos complicados porque foram compartilhados entre aqueles que tiveram a maturidade de alcançar tal percepção.

O conto não demonstra ser, então, sobre um último inverno a ser vivido pelo casal. O conto parece ser mais sobre o primeiro dia daquele último inverno em que eles foram felizes como nunca mais seriam ou serão. Não há de se esperar, porém, ter-se um nível extremo e constante de felicidade. Esse idílio é somente isso: um idílio. Carrascoza cria, por sua vez, toda uma áurea para o casal que parece perfeita e bem acomodada, mas que tem suas imperfeições nos detalhes: uma dor na perna ao dirigir, uma mala que se esqueceu, um trânsito na estrada. São detalhes reais de casais reais que, talvez, não sejam mais tão felizes quanto foram naquele dia. Mas podem, ainda, continuar como um casal. Invernos acontecem anualmente.

Em períodos de incerteza e de busca por um status de felicidade constantemente “postável”, ter acesso aos textos de Carrascoza é um diferencial que pode nos ajudar a pisar novamente na terra firme da realidade que se constrói com detalhes, tal como são os textos do autor. Para quem ainda não o leu, há sempre um “primeiro dia”, em qualquer dia de julho, nos nossos invernos tropicais.
  

Comentários

Que texto maravilhoso, Sérgio!
Vou comprar o conto e lê-lo nos próximos dias.
Abraço!
Luís Fagner disse…
Sim, disse muito de uma obra que, certamente, como a restante, não se tem nada a dizer.

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574

Dalton por Dalton