Decálogo para contistas segundo Julio Ramón Ribeyro

Julio Ramón Ribeyro. Foto: Baldomero Pestana



 
O conto é um gênero literário que sempre me cativou. Desde a infância, para ser exato. Jamais esquecerei a impressão que “Riquet”, de Anatole France, me causou quando eu tinha onze ou doze anos: quando cheguei ao final senti uma espécie de sufocamento ou vertigem pelo desfecho inesperado. Mais tarde, outras histórias me seduziram, mas por motivos diferentes: “Os olhos de Judas”, de Valdelomar, pelo seu tom nostálgico e melancólico; “A jarra” de Pirandello, pela graça da situação; “Carta roubada”, de Poe, pelo engenho de sua intriga; “Bola de sebo” de Maupassant, pela revoltante crueldade da história; “José Matias” de Eça de Queirós, pela sua delicada ironia, ou “Um coração simples” de Flaubert, pela concisão do seu estilo. E mais tarde ainda, ao ler os contos de Kafka, Joyce, James, Hemingway e Borges, para citar alguns autores, descobri novas probabilidades e alegrias na narrativa breve; a lógica do absurdo, a habilidade técnica, a arte do não-dito, a eficácia do diálogo, a sabedoria e a fantasia postas a serviço de paradoxos e parábolas intelectuais.
 
Como contista, sou o tecido dessas leituras e de muitas outras que levaria muito tempo para citar. Alguém que se alimenta dos autores que ama, de quem tira algo ou muito e aprende, mas sobretudo alimenta-se da própria experiência. E a minha, por tempo, lugar e acidentes, é diferente da dos autores que admiro, de modo que dificilmente poderia escrever como eles. Meus contos, pelo menos eu acho, são o espelho da minha própria vida, a de um escritor de Lima da segunda metade do nosso século, educado em um ambiente burguês esclarecido, que viveu muitos anos na Europa, que desempenhou mais por a necessidade que por gosto vários trabalhos, que alternou períodos de diversão com períodos de reclusão e que regressava ao seu país carregado de memórias e experiências, mas com pouquíssimas certezas e a sensação de ter perdido muito tempo, exceto talvez o tempo gasto a escrever alguns livros, principalmente de contos.
 
Contos, espelho da minha vida, mas também reflexo do mundo em que vivi, sobretudo o da minha infância e juventude, que procurei captar e representar naquilo que, na minha opinião, e segundo a minha própria sensibilidade, merecia isso: sombrios habitantes de Lima e suas ilusões frustradas, cenas da vida familiar, Miraflores, o mar e as dunas, batalhas perdidas, soldados, bêbados, escritores, latifundiários, malandros e malfeitores, loucos, putas, professores, burocratas, Tarma e Huamanga, mas também a Europa e minhas pensões e viagens e algumas histórias que vieram apenas da minha fantasia, é a isso que se reduzem meus contos, pelo menos por seus temas ou personagens. Que eles — meus contos — tão variados e díspares, fragmentos de minha vida e do mundo como eu o vi, possam juntos adquirir uma certa unidade e propor uma visão orgânica, coerente, pessoal da realidade, é algo que eu não poderia afirmar. E isso não me incomoda muito. Assim como não estou preocupado que minhas histórias não reflitam as mutações sofridas pelo Peru nos últimos vinte anos. Escrever sobre o atual, sobre o imediato, é importante, mas não essencial. Para isso também há entre nós muitos jovens e excelentes contistas. Embora seja bom lembrar, parafraseando Borges, que a atualidade é muitas vezes anacrônica.
 
Para concluir este breve preâmbulo, direi que gostaria de aproveitar a ocasião para desenvolver minha concepção do conto ou, se preferir, minha poética do conto, à luz de meus quarenta ou mais anos de experiência neste gênero. Mas me pareceu ocioso ou redundante, já que tal poética está implicitamente formulada em meus contos, pelo menos para o leitor atento. Por conseguinte, limitar-me-ei a enunciar aleatoriamente alguns preceitos:
1 — A conto deve contar uma história. Não há conto sem história. O conto foi feito para que o leitor, por sua vez, possa contá-lo.
 
2 — A história do conto pode ser real ou inventada. Se for real deve parecer inventado e se for inventado real.
 
3 — A história deve ser preferencialmente curta, para que possa ser lida de uma só vez.
 
4 — A história contada pelo conto deve entreter, comover, intrigar ou surpreender, se tudo isso junto melhor. Se não conseguir nenhum desses efeitos, não existe como conto.
 
5 — O estilo do conto deve ser direto, simples, sem embelezamentos ou digressões. Deixemos isso para a poesia ou para o romance.
 
6 — O conto deve apenas mostrar, não ensinar. Caso contrário, seria uma moral.
 
7 — O conto admite todas as técnicas: diálogo, monólogo, narração pura e simples, epístola, relato, colagem de textos alheios etc., desde que a história não seja diluída e o leitor possa reduzi-la à expressão oral.
 
8 — O conto deve partir de situações em que o personagem ou personagens vivenciam um conflito que os obriga a tomar uma decisão que põe em risco o seu destino.
 
9 — No conto não deve haver tempo de inatividade nem sobrar nada. Cada palavra é absolutamente essencial.
 
10 — O conto deve conduzir necessariamente, inexoravelmente a um único desenlace, por mais surpreendente que seja. Se o leitor não aceitar o desenlace, a história falhou.
 
Observar este decálogo, como esperado, não garante a escrita de um bom conto. O mais aconselhável é transgredi-lo regularmente, como eu mesmo fiz. Ou melhor ainda: inventar um novo decálogo.


Notas
* Texto extraído do livro La palabra del mudo. Cuentos 1952-1993, de Julio Ramón Ribeyro (p.5-6).

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