O cupom falso, de Lev Tolstói

Por Joaquim Serra




 
O jovem Mítia precisa urgentemente saldar uma dívida com um amigo da escola, de quem pediu dinheiro emprestado. O pai, um burocrata mal-humorado, não quer aumentar o valor da mesada, tampouco adiantar o dinheiro do próximo mês. Mítia então recorre ao amigo Mákhin, um tipo esperto, conhecedor dos jogos de cartas e das mulheres. A solução, para Mákhin, poderia ser uma: falsificar um cupom que, àquela época, fazia as vezes do dinheiro. Assim inicia a saga da personagem principal da novela O cupom falso, isto é, o próprio cupom. Tolstói faz do cupom um motivo de corrupção ou destruição independe das mãos que o segura.
 
O motivo do dinheiro funciona como um moto-contínuo na narrativa; retroalimenta a história de todos os personagens — transformando-se em acerto de contas, necessidade e desejo. E, por culpa dele, vários destinos se entrelaçam — mas vamos tratar de apenas uma das muitas histórias. Depois de receber o falso cupom, coube ao comerciante se desfazer dele comprando lenha de um mujique. Sem perceber que carregava um cupom falso, o mujique tenta passá-lo adiante numa taverna e acaba humilhado e preso por isso. Reestabelecer sua honra se torna algo impossível, já que o comerciante arma um álibi convincente aos ouvidos do juiz. Agora, livre, mas sem ter o que fazer, o mujique começa a roubar cavalos de vilarejos.
 
Aterrorizados pelos roubos, quando finalmente capturam o tal mujique ladrão, esmagam sua cabeça com uma pedra. O homem acusado do crime, Stepan, um ex-combatente, vai para a prisão. Tendo saído da prisão e sem destino certo, Stepan recebe abrigo de um velho conhecido dono de uma pequena estalagem. No meio da noite, Stepan mata o homem e a mulher com um machado e foge. Depois comete outros assassinatos, sem qualquer abalo moral. Mata homens, mulheres e crianças, até receber um castigo semelhante ao de Raskolnikov, o da própria consciência. A última vítima de Stepan — o equivalente feminino de um Míchkin — vira um bezoar, coisa mal digerida, retumbando no estômago e na cabeça de Stepan. O homem então se deixa ser capturado, mas as visões do último crime o acompanham até a prisão.
 
Na segunda parte da novela, temos uma nova peripécia na vida de Stepan. Quando ouve uma pregação e uma filosofia prática de como viver o evangelho — uma crítica de Tolstói à institucionalização da fé —, Stepan muda completamente; aprende a ler e agora ele mesmo transmite aos outros a palavra divina, tornando-se uma espécie de santo em formação. Talvez esse ponto mereça um contraponto: há um personagem de Tchekhov, o jovem jurista do conto “A aposta” (Lendo Tchekov, Ediouro), que encontra no cárcere respostas semelhantes para suas inquietações. Porém, enquanto a máxima da vida religiosa de Stepan se torna “somos irmãos” e “não devemos julgar ninguém”, o jurista do conto de Tchekhov usa as escrituras justamente para se afastar da hipocrisia que grassa como ordem do dia.
 
Voltando à novela, outras biografias são igualmente interessantes: a de uma revolucionária incendiária, de padres que são recompensados depois de ações questionáveis, do destino dos jovens que falsificaram o cupom. Tolstói faz um chamado moral e espiritual, o que talvez enfrente alguma resistência para um leitor mais secularizado, ainda que o faça à sua maneira sempre clara e atenta a tensões próprias da forma que escolhe narrar; “trata-se”, segundo o posfácio à obra da tradutora Priscila Marques, “da busca de Tolstói por aquilo que é justo e, ao mesmo tempo, preciso, exato e conciso” (p. 87). Apesar de muitas histórias, o leitor não se perde em momento algum, já que a costura das diversas tramas deixa sempre seus fios em alto-relevo, além de, se acostumado à obra de Tolstói, acompanhar o “saldo de uma vida inteira de reflexões sobre atraso e modernidade, fé genuína e performance clerical, o juridicamente legal e o moralmente correto.” (p. 87). O cupom falso impressiona pelo domínio da técnica e dos temas caros ao autor, numa novela em que tempo e espaço acumulam destruição e redenção.


Agradeço à Priscila Marques por sanar algumas dúvidas que surgiram durante a redação deste texto.


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O cupom falso
Lev Tolstói
Priscila Marques (Trad.)
Editora 34
96 p.

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