O regresso de Mario Vargas Llosa a um país atribulado

Por Domingo Rodenas de Moya


Mario Vargas Llosa. Foto: Ximena Garrigues e Sergio Moya.

 
É impossível reprimir uma certa melancolia para aqueles de nós que lemos os romances e ensaios de Mario Vargas Llosa durante toda a vida, porque o imenso escritor de Arequipa, depois de mais de sessenta anos de trajetória (os contos de Os chefes são de 1959)1, anuncia seu fim com Le dedico mi silencio2 e um próximo ensaio sobre Jean-Paul Sartre.
 
Para se aposentar do romance, gênero no qual produziu um número surpreendente de obras-primas — de A cidade e os cachorros (1963) e A casa verde (1966) à Conversa no Catedral (1969), A guerra do fim do mundo (1981) ou A festa do bode (2000), Vargas Llosa escolheu um caminho de regresso, um retorno ao seu Peru enredado e afligido pelas fissuras e pelas diferenças sociais, e um estratagema frequente em sua obra: o de inserir na ficção o processo de escrita de um livro, neste caso um ensaio sobre a música crioula (valsas, huainos, marineras...) como uma mágica panaceia nacional para a desunião e a desigualdade do país.
 
Quem sustenta esta tese utópica é Toño Azpilcueta, um triste “intelectual proletário” incapaz de sustentar a família, que uma noite se deslumbra pelo violonista Lalo Molfino. Na sua inefável genialidade ele vislumbra uma reflexão patriótica, a força coesiva com que a música crioula suturou as profundas divisões do país. Daí o propósito de escrever um livro sobre Molfino que seja ao mesmo tempo uma história apaixonante e erudita da música folclórica peruana.
 
Desta forma, Vargas Llosa alterna os capítulos que reproduzem trechos daquele livro em andamento com as investigações e aventuras de Azpilcueta, combinando narração e ensaio e alcançando o raro equilíbrio que nos interessa tanto o futuro da valsa peruana quanto o enredo que gira em torno do folclorista. E assim, passamos do berço das canções crioulas no Pampa de Amancaes à figura patriarcal de Felipe Pinglo Alba (morto no mesmo ano do nascimento de Vargas Llosa), da internacionalização promovida por Chabuca Granda3 até a cantora Cecilia Barraza4, que no romance é amiga e amor platônico de Azpilcueta.
 
E, paralelamente, vemos como Azpilcueta, vítima de uma fobia irreprimível por ratos, fica obcecado por seu livro, ao ponto de negligenciar sua família e permanecer cego às evidências de que o Peru está fraturado e sangra desde o surgimento do Sendero Luminoso em 1970 até a queda de seu líder Abimael Guzmán em 1992.
 
As referências ao grupo terrorista pontuam o romance, o que sublinha a ingenuidade da doutrina da personagem e, implicitamente, a fragilidade e ineficácia de soluções simples (a música crioula) para problemas complexos (a criação de um sentimento nacional que integre ricos e pobres, indígenas, cholos e brancos, serranos e litorâneos...).
 
E embora as mensagens simples possam ser atraentes e ressoar no início, como acontece com o sonho de Azpilcueta de um Peru mestiço e pacífico, a sua própria inconsistência acaba por dissolvê-los quando são postos à prova ou quando, para testá-las, são ignoradas ou manipula a realidade, que é o que o folclorista iludido faz com o casal modelo Toni e Lala (emblema da união dos opostos).
 
Vargas Llosa não quis despedir-se do romance apenas com uma homenagem à sua querida música crioula, mas, oferecendo um estudo sobre ela e a visão do mundo sentimental que expressa, ao kitsch (atenção ao magnífico capítulo XXVI), quis ainda propor uma reflexão sobre como o idealismo bem-intencionado, mas reducionista, leva ao engano, à derrota e à melancolia. Se Lalo Molfino se despede de Cecilia Barraza, dedicando-lhe o seu silêncio, o romancista Vargas Llosa faz o mesmo com os seus leitores e deixa-nos, por um lado, maravilhados com a magnitude de tudo o que está escrito e, por outro, um tanto taciturnos com sua despedida.
 

Notas da tradução:

1 Em 2010, a Alfaguara reuniu Os chefes com a novela Os filhotes (1967) numa só edição. O primeiro livro de Mario Vargas Llosa reúne seis contos circunscritos na difícil vida de jovens na Lima dos anos 1950. Alguns dos temas, com as disputas no colégio militar voltariam em outras obras, como A cidade e os cachorros.
 
2 Publicada no final de outubro nos países de língua espanhola, a última obra romanesca de Mario Vargas Llosa ainda não possui título em língua portuguesa. Em tradução livre, Dedico-lhe meu silêncio.
 
3 Chabuca Granda (1920-1983) foi uma cantora e compositora peruana que ficou conhecida pela canção “La flor de la canela”.
 
4 Cecilia Barraza (1952-) é uma cantora e intérprete peruana de música crioula e divulgadora da música original de seu país. 


* Este texto é a tradução livre de “Vargas Llosa vuelve a um Perú afligido en su novela de despedida”, publicado aqui, em El País. 

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