Visitas a Walt Whitman por Virginia Woolf

 
 
Virginia Woolf ficou reconhecida pelos seus romances e contos. Mas foi também uma exímia crítica literária, interessada pela leitura de obras variadas ou por personalidades marcantes. Entre 1908 e 1938 ela colaborou escrevendo textos críticos para The Times Literary Supplement. Nessas duas décadas o editor do suplemento Bruce Richmond enviou-lhe centenas de livros com interesse na opinião da escritora inglesa.
 
Entre esses livros, esteve Visits to Walt Whitman in 1890-1891, de John Johnston e James William Wallace. Trata-se de um relato dos encontros entre dois membros da Bolton Whitman Fellowship com o poeta estadunidense de Folhas de relva. A resenha de Woolf foi publicada na revista em 3 de janeiro de 1918 e é um delicado retrato de Whitman ressaltando-se algumas das qualidades que, certamente, ela própria tinha como suas ou foram integradas à sua obra e ao seu pensamento — vale a leitura deste texto de Neal E. Buck “Whitman in The Waves”, publicado em Literary Imagination. O texto de Virginia Woolf está traduzido a seguir.
 
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As grandes flamas da vida intelectual que ardem em Oxford e Cambridge estão tão bem alimentadas e duraram tanto que é difícil sentir, como deveria ser, a maravilha desta concentração nas coisas imateriais. Quando, no entanto, alguém acidentalmente tropeça em um fogo que queima de maneira isoladamente, sem associações ou espírito para protegê-lo, a chama do espírito se torna um coração visível onde se pode aquecer as mãos e agradecer. Só por acaso é que alguém se depara com alguns destes archotes. Eles queimam em lugares inesperados. Se alguém fosse solicitado a traçar a situação de Bolton por volta do ano de 1885, pensaria sem dúvida no mercado de algodão, como se o centro da prosperidade da cidade dependesse disso. Não haveria menção ao grupo de jovens — clérigos, manufatureiros, artesãos e banqueiros de profissão — que se reúnem nas tardes de segunda-feira para conversar sobre assuntos sérios, abordar os temas mais íntimos e polêmicos de maneira franca, sem medo de ofender ninguém, e manter a visão particular de que Walt Whitman foi “a maior figura de época maior de toda a literatura”. No entanto, quem se atreveria a estabelecer um limite para os efeitos de tal conversa? Neste caso, além do inestimável serviço espiritual, esta teve alguns resultados tangíveis surpreendentes. Como consequência destas reuniões, dois dos seus participantes cruzaram o Atlântico, um fluxo constante de presentes e mensagens foi mantido entre Bolton e Camden, e enquanto Whitman agonizava tinha aqueles “bons rapazes de Lancashire” em sua mente. O livro que narra esses acontecimentos já havia sido publicado anteriormente, mas vale a pena reimprimi-lo pela luz que lança sobre um novo tipo de herói e o tipo de adoração que era aceitável para ele.

Walt Whitman em seu quarto em 1891. Desenho de Mark Stockton feito a partir de retrato feito por William Reeder.
Arquivo: Pennsylvania Academy of the Fine Arts


 
Para Whitman, não era impróprio para a dignidade humana aceitar dinheiro ou roupas íntimas, mas dizia que não havia necessidade de falar sobre essas coisas como presentes. Por outro lado, ele não tinha interesse em elogios baseados na ilusão de que era melhor ou diferente da maioria dos seres humanos. “Bem”, disse ele, estendendo a mão para saudar o Sr. Wallace, “eles ficaram desapontados, certo?” E o Sr. Wallace admitiu que estava um pouco desapontado. Nada na aparência de Walt Whitman estava em desarmonia com a mais elevada tradição poética. Era um velho magnífico, enorme, corpulento, impressionante pelo seu poder, pela sua delicadeza e pela sua profunda simpatia. A decepção ocorreu porque “a maior figura da maior época de toda a literatura” era “simples, comum e muito mais intimamente próxima de mim do que eu imaginava”. Na verdade, o poeta parecia ter feito um esforço para colocar em primeiro plano a sua humanidade comum. E tudo sobre ele era tão difícil quanto deveria ser. O chão, que parecia apenas parcialmente acarpetado, estava coberto de pilhas de papéis. Os alimentos e os utensílios de limpeza se misturavam com provas e recortes de jornais em acumulações ancestrais que até uma preciosa carta de Emerson apareceu por acidente após anos perdida. Entre todos esses escombros, Walt Whitman se sentava impecavelmente limpo em seu terno cinza, com um semblante mais parecido com o de um fazendeiro aposentado cujos dias de trabalho haviam terminado. Ele gostava de falar deste homem e de perguntar aos convidados sobre seus filhos e suas terras e, pensando mais em lugares e seres humanos do que em livros e pensamentos, seu humor era uniformemente benigno. O seu temperamento, e nenhum sentido de obrigação, levaram-no a esta opinião, que no seu ponto de vista cabia-lhe “dar ou expressar quem realmente era e, se me sentisse um demônio, dizê-lo!”
 
E então parecia que este fazendeiro sábio e de pensamento livre recebia cartas de Symonds e enviava mensagens para Tennyson, e era indiscutivelmente, tanto na sua opinião quanto na dele, da mesma estatura e importância que qualquer uma das figuras heroicas do passado e de o presente. Seus nomes surgiram na conversa como se fossem iguais. Na verdade, de vez em quando algo parecia “colocá-lo em isolamento espiritual e dar-lhe às vezes um ar de tristeza melancólica”, enquanto em suas conversas e confidências as frases e ideias de seus poemas saíam sem esforço. Superioridade e vitalidade não se encontram na classe, mas nas maiorias. O americano médio, insistia ele, era imenso, “embora nenhum homem possa ser verdadeiramente heroico se for verdadeiramente pobre”. E “Shakespeare e o resto” alcançam por si só o fio da meada de outras questões. “Shakespeare é o poeta de grandes personalidades.” Quanto à paixão, “acho que Ésquilo era melhor”. “Um navio a todo vapor é o espetáculo mais grandioso do mundo e nunca foi incluído em um poema.” Ou poderia fazer comentários do mesmo nível sobre seus importantes contemporâneos ingleses. Carlyle, opinava, “carece de amor”. Carlyle era um rabugento. “Quando as estrelas brilham intensamente — suponho que seja uma exceção nesse país — alguém lhe dizia: ‘É uma bela vista e Carlyle respondia: ‘É uma visão triste’... Como ele era mal-humorado.”
 
É inevitável que alguém compare dois velhos cujas vidas seguiram rumos diferentes, onde um não via mais que tristeza no brilho das estrelas e o outro podia mergulhar num sonho de felicidade só por sorver a essência de uma laranja. Em Whitman a capacidade para o prazer parece nunca ter diminuído e o poder de incluir cresceu sempre mais. Assim, embora os autores deste livro lamentem que tenham apenas um conjunto trivial de declarações para nos oferecer, ficamos com a sensação de “um plano de fundo ou a vista imensa” e as estrelas brilhando mais intensas do que nunca.

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