O que resta do neorrealismo?

Por Javier Ocaña


Anna Magnani (Pina) na célebre cena de Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini.

 
Ao contrário de outros grandes movimentos, como a nouvelle vague ou o free cinema britânico, correntes renovadoras, mesmo revolucionárias, contra o estado do cinema da época, o neorrealismo não foi um ato planejado. Vittorio de Sica, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Cesare Zavattini e Luchino Visconti nunca se encontraram na redação de um jornal ou numa trattoria de Trastevere para planejar uma virada artística, social e política. Algo que Lindsay Anderson, Tony Richardson, Karel Reisz e companhia fizeram na Inglaterra, os jovens furiosos que finalmente retrataram a pia da cozinha do seu país, e que chegaram ao ponto de escrever um manifesto de interesses estéticos. Algo que também realizaram Claude Chabrol, Alain Resnais, Jean-Luc Godard, François Truffaut e Jacques Rivette, formados na sua ideologia em torno da revista Cahiers du Cinéma.
 
O neorrealismo não se constitui, emerge. O neorrealismo não se planeja, simplesmente brota graças a (ou por causa de) uma série de circunstâncias políticas, sociais e industriais, todas elas trágicas, em torno dos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, do declínio do fascismo de Mussolini e da pobreza econômica e moral de um país arruinado. Foi então que, entre 1943 e 1948, um punhado de diretores criou uma série de maravilhosos filmes que pareciam falar da mesma coisa de maneira semelhante: os sacrifícios do povo; as crianças como observadoras das dificuldades de vida dos mais velhos; o retrato do desejo sexual até então proibido pela censura fascista; o cataclismo ético na mente dos cidadãos que, entre a fome e a desolação, já não sabiam se resistiram ou colaboraram com o poder nazista. Quando Roma, cidade aberta foi apresentado em 1945, a revista Life afirmou que o filme ajudou a Itália a começar a recuperar a nobreza perdida durante o governo de Mussolini. Foi justamente esta obra de Rossellini que acabou por impor o nome “neorrealista”, cunhado pelo crítico Umberto Barbaro, para definir títulos como Ladrões de bicicleta (1948) ou Vítimas da tormenta (1946), de De Sica, Paisà (1946) e Alemanha, ano zero (1948), de Rossellini, e A terra treme (1948), de Visconti. Obras históricas que, em todo caso, não tinham um estilo unitário, pois algumas estavam próximas do documentarismo e outras da busca pela solidez da narrativa.
 
Por todas estas razões, falar hoje em neorrealismo pode ter um pouco de léria. Ou talvez nem tanto. O que resta do movimento que radiografou um país, transformou o cinema mundial subsequente com as suas formas e o seu conteúdo, mas não conseguiu mudar a Itália, atolada desde então numa crise política quase perpétua? Perguntamo-nos isto porque se voltou a falar de neorrealismo, mesmo equivocadamente, depois da estreia internacional do bem-sucedido filme italiano Ainda temos amanhã, dirigido pela atriz Paola Cortellesi (mais de cinco milhões de espectadores no seu país). E porque, desta vez discretamente, desde meados de maio se reapresentam nos cinemas do Reino Unido e Irlanda as severas, demolidoras e ao mesmo tempo belíssimas Roma, cidade aberta, Paisà e Alemanha, ano zero.
 
É claro que se o neorrealismo permanece em algum filme, não é, por mais que alguns o citem, em Ainda temos amanhã (2013), um filme popular na sua totalidade e com muitas virtudes, mas que quase poderia ser considerado a antítese do movimento, apesar do seu preto e branco e de ambientação no pós-guerra, com os seus espancamentos às mulheres, das danças, a sua surpreendente reviravolta dramática final, o seu toque melodramático e um certo esquematismo no seu humor leve.
 
“Quando alguém, seja o público, o Estado ou a Igreja, diz: ‘Basta de pobreza, chega de filmes que refletem a pobreza’, comete um delito moral. Recusa-se a entender, a descobrir. E por não querer descobrir, conscientemente ou não, se foge da realidade”, disse Cesare Zavattini, um dos roteiristas fundamentais de um movimento que levou as câmeras para o exterior porque os estúdios de cinema estavam destruídos, que aproveitou as ruínas das ruas e edifícios como ambientação, que utilizou frequentemente intérpretes não profissionais, que estabeleceu uma crítica aberta à indiferença das autoridades, e que colocou a transição do indivíduo para a coletividade como o seu núcleo.
 
Na Itália, o neorrealismo foi se esgotando ou se transformando a partir de 1948, após a chegada dos democratas-cristãos ao poder e a promoção de um cinema mais comercial a partir do gabinete de cinematografia comandado pelo mais tarde famoso Giulio Andreotti. Assim, a bela austeridade de obras como Ladrões de bicicleta passou a adornar com um ponto de artifício noutras expressões como as de Duas mulheres (1960), para citar dois títulos do mesmo diretor. E ainda sobreviveu em títulos como Rocco e seus irmãos (1960), de Visconti, até mesmo no estimulante neorrealismo rosa, injustamente insultado em sua época por alguns críticos desde o seu apelativo de introduzir a comédia nos postulados da verdade, apesar de aquelas obras de figuras como Mario Monicelli e Luigi Comencini — A grande guerra (1959) e Regresso ao lar (1960) — podiam ser tão ou mais duras, mesmo com risadas, do que algumas de suas irmãs mais velhas.
 
Entretanto, a sua influência nos cinemas de todo o mundo foi total. Na Índia, com a obra de Satyajit Ray e sua Trilogia de Apu. Em boa parte dos cinemas, do Leste Europeu ao Brasil. Na própria Itália, com obras, entre outros, dos irmãos Taviani e Ermanno Olmi. Na Nova Hollywood dos anos setenta, principalmente em Jerry Schatzberg de Pânico em Needle Park (1971) e O espantalho (1973). E mesmo na Espanha, apesar da censura, com obras como Sulcos (1951), de José Antonio Nieves Conde. Mais de três décadas de influência neorrealista, como se pode verificar, em países e em períodos históricos marcados, como ocorreu no neorrealismo, por colapsos e tentativas de reordenamento moral.
 
Então, onde podemos encontrar a marca neorrealista no cinema de hoje? Não em qualquer filme em preto e branco que fale da realidade italiana. Nem naquele olhar de remorso burguês que parece habitar Roma (2018), de Alfonso Cuarón, que também se disse neorrealista. Essa não é a essência. A chave está em filmes que possam provocar no poder de seus respectivos países frases como a de Andreotti após a estreia do avassalador Umberto D (1952), de De Sica: “Os trapos sujos se limpam em casa e não ao ar livre”. Ou seja, em alguns dos melhores filmes do diretor chinês Jia Zhang Ke — Xiao Wu, um artista batedor de carteiras (1997), Prazeres desconhecidos (2002) e Amor até às cinzas (2018); na obra de Abbas Kiarostami e dos seus melhores discípulos no Irã; em Andrey Zvyagintsev e sua visão arrepiante da Rússia contemporânea em Leviatã; nos documentários do italiano Gianfranco Rosi, Sacro GRA (2013) e Fogo no mar (2016), sobre a pobreza nas estradas circulares de Roma e o horror dos refugiados na ilha de Lampedusa. Uma resistência, uma luta renovada. Sem apriorismos, sem dogmas, sem condescendência, sem (excessivos) formalismos. De forma aberta, crítica e sempre no caminho da autenticidade. Nas palavras de De Sica: “O neorrealismo nasceu em nós, no nosso espírito, na necessidade de nos expressarmos de uma forma diferente da que o fascismo e um certo tipo de cinema norte-americano nos obrigaram”.
 
 
* Este texto é a tradução livre de “¿Qué queda del neorrealismo?”, publicado aqui, no jornal El País.

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