Nietzsche, filósofo da suspeita de Scarlett Marton

Por Herasmo Braga

Scarlett Marton. Foto: Wikipédia (Reprodução)


 
Atitude notória no âmbito da tradição de pensamento é dedicar-se por longos períodos a determinados pensadores críticos ou mesmo a um campo de ideias significativas relacionadas aos dilemas humanos. Unir um analítico crítico-reflexivo dedicado e um relevante proclamador de ideias profundas em uma mesma realização escrita é algo não só notável, como também, uma benesse para aqueles apreciadores de conjunto de ideias tão bem desenvolvidas e articuladas. É o que acontece na obra Nietzsche, filósofo da suspeita, de Scarllet Marton.

A obra apresenta, de maneira objetiva, sem pecar na profundidade, certo panorama que promove não só atualização, mas a ressignificação das ideias de Nietzsche ao longo das suas obras. Como bem evidencia a autora nas primeiras linhas: “Quem julgou compreendê-lo equivocou-se a seu respeito, quem não o compreendeu julgou-o equivocado”. Esse é um dos grandes feitos de pensadores que promovem rupturas e insurreições no mundo da aparente estabilidade interpretativa acerca do mundo e dos sujeitos: incomodar quem tenta silenciá-lo, ser abraçado de maneira apaixonada pelos pueris que clamam por novidades e delas se alimentam para firmar-se, e aqueles que buscam de algum modo procurar compreendê-lo à luz interpretativa padrão que ele rompe. Como adverte Scarllet Marton: “Importante era respirar o ar de seus escritos”. É exatamente com essa postura que a autora se lança sobre as produções de Nietzsche e desenvolve a tese central do livro do porquê “filosófico da suspeita”.

Marton promove leve ensinamento, que muito revela a autoridade e grau de consciência de quem busca despertar novos olhares acerca das coisas, como reconhecer quem determina o gênero a ser contemplado na escrita não é o autor, sua intenção, sua maior habilidade em desenvolver; quem determina a forma, o gênero, a estrutura, a entonação, o vocabulário, o diálogo com outros autores é a ideia. Assim, não foi com o intuito de passear pelas mais diferentes formas de escrita que Nietzsche registrou em cada livro seu; atender da melhor maneira o vigor da reflexão era algo indispensável para ele. 

Nesse sentido, Marton esclarece: “Nietzsche não hesita em experimentar em seus escritos as mais variadas formas estilísticas”. Seu compromisso, portanto, era com o teor reflexivo em vigência no escrito e, por essa razão, em Nascimento da tragédia e Genealogia da moral, fora escolhido o discurso contínuo, em Ecce Homo, o autobiográfico, Considerações extemporâneas, o caráter polêmico; em outros, o estilo do aforismo fora o privilegiado. Tudo para que o ponto de problematização fosse mais bem desenvolvido e relacionado de modo profundo e atingisse o âmago dos sujeitos experimentadores do escrito. 

Para Scarllet Marton: “E a coerência reside, aqui, no caráter experimental de sua filosofia. Nos textos, querer fazer experimentos com o pensar encontra tradução em perseguir uma ideia em seus múltiplos aspectos, abordar uma questão a partir de vários ângulos de visão, tratar de um tema assumindo diversos pontos de vista, enfim, refletir sobre uma problemática adotando diferentes perspectivas”. Portanto, promover o alcance e a excelência do amadurecimento da ideia era o objetivo maior, e todos os detalhes no entorno tinham de servir na precisão dela.



Outro componente adicional à escrita de Nietzsche, mencionado por ele mesmo e Marton, destaca-se na sua obra: “Amo apenas o que alguém escreve com sangue”, e pode-se complementar, como na passagem de Fragmentos póstumos: “Sempre escrevi minhas obras com todo o meu corpo e a minha vida; ignoro o que sejam problemas ‘puramente espirituais’. Nesse contexto, o filósofo insere a sua obra Zaratustra à luz de Scarllet Marton que ‘Zaratustra sempre apela para sua experiência singular”. Mas cada trecho dos escritos nietzschianos constitui momentos reflexivos únicos e poucos formam como ele, segundo a filósofa e estudiosa do pensamento de Nietzsche, que sinaliza serem, além do autor de Assim falou Zaratustra, outros pensadores se aproximam da ideia da suspeita como Marx e Freud. Isso ocorre por serem, assim como Nietzsche, grandes revolucionadores no campo das ideias, nas ações no mundo e no próprio entendimento do ser homem e suas relações.

Algumas das grandes marcas do conjunto de ideias presentes ao longo dos escritos de Nietzsche, conforme destaca Scarllet Marton, são o caráter de pluralidade e o dinamismo de suas inquietações, difíceis de serem enquadradas sob a égide de determinada categoria ou possível definição, como revela Marton: “E nada mais avesso ao espírito nietzschiano que cristalizar convicções”, portanto, estabelecer padrões, linhas progressistas, linearidade, além de ações em vão, constitui-se algo também incompatível com o conjunto de pensamentos de Nietzsche.

Em consonância com as formulações do pensador alemão, expressa-se Marton acerca do que se esperar do leitor de Nietzsche: “É desta forma que quer ser lido: lentamente, com cuidado e consideração. Do leitor ideal espera coragem e despojamento; exige uma leitura compromissada”. Destarte, Nietzche deve ser lido e compreendido conforme uma proposta de Machado de Assis: ser lido e refletido de maneira ruminante para que a absorção das suas ideias seja assimilada na excelência e ser efetivada no exercício da vida.


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Nietzsche, filósofo da suspeita
Scarlett Marton
Editora Autêntica, 2024
144p.
 

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