Rosario Castellanos: a inteligência como única arma
Por Raquel Lanseros
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| Rosario Castellanos. Foto: Rogelio Cuéllar |
A vida de Rosario Castellanos é tão fascinante, multifacetada e repleta de contrastes quanto sua própria personalidade e, claro, sua obra literária. Embora tenha nascido na Cidade do México em 1925, passou a infância em Comitán, Chiapas, terra natal de sua família. Deve existir algo de mágico nessa terra para que tantos grandes nomes da literatura mexicana tenham vindo daí; além de Rosario Castellanos, sabemos do seu amigo Jaime Sabines¹ ou do luminoso Efraín Bartolomé².
Filha de uma importante família de latifundiários de Chiapas, proprietária de uma fazenda com escravos, Rosario Castellanos teve consciência desde cedo das injustiças que impediam no seu país o progresso dos povos indígenas: uma compreensão que, juntamente com ambições intelectuais consideradas impróprias para uma mulher de seu tempo e do momento histórico dominante, sempre a impediu de se sentir integrada à sociedade hierárquica de seu primeiro ambiente.
Desde o nascimento, Castellanos teve a companhia da babá Rufina e da dama de companhia María Escandón, uma menina da mesma idade. Ambas as mulheres indígenas representam um marco crucial na vida da autora, pois com elas percebeu que as coisas não podiam e nem deviam continuar como eram ou estavam estabelecidas ou ainda como se esperava que ela aceitasse e perpetuasse como tal a memória e a condição de seus antepassados.
Basta destacar que, após a morte de seus pais e de receber a herança de seus bens imóveis, ela decidiu doá-los integralmente aos povos indígenas de Chiapas. Como podemos ver, não foi apenas sua condição de mulher com ambições intelectuais que diferenciou Rosario Castellanos de seu meio, mas também uma aguda consciência do significado de ser branca em relação aos povos indígenas, o que a colocou em posição de decidir, tomar partido, erguer a voz e compartilhá-la com aqueles que estavam fora de possuírem esse direito.
Com dezesseis anos, Rosario Castellanos retornou à Cidade do México para prosseguir seus estudos e, em 1950, graduou-se em Filosofia pela Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM), quando e onde conheceu figuras como Ernesto Cardenal, Dolores Castro, Jaime Sabines e Augusto Monterroso. Com uma bolsa do Instituto de Cultura Hispânica, continuou a sua formação estudando Estética e Estilística na Universidade de Madri, com a amiga Dolores Castro e sob a tutela de Dámaso Alonso.
Ao retornar ao México, trabalhou como promotora cultural no Instituto de Ciências e Artes de Chiapas, em Tuxtla Gutiérrez, e no Centro de Coordenação do Instituto Nacional do Índio, em San Cristóbal de las Casas, também em Chiapas. Atuou ainda como autora de livros didáticos para o Instituto Nacional do Índio do México; dirigiu o Teatro de Marionetes Tzeltal-Tzotzil — recordemos que o tzotzil é a principal língua maia falada no estado de Chiapas e a quinta língua indígena mais falada no México, depois do náuatle, do maia de Yucatán, do mixteco e do zapoteco.
Rosario Castellanos foi bolsista da Fundação Rockefeller no Centro Mexicano de Escritores, o que lhe permitiu escrever poesia e ensaios entre 1954 e 1955. Atuou como chefe do Departamento de Informação e Imprensa da UNAM e lecionou Literatura Comparada, Romance Contemporâneo e Crítica na Faculdade de Filosofia e Letras da mesma instituição. Ainda no meio acadêmico, destacou-se como uma professora de enorme sucesso, tanto no México quanto no exterior: nos Estados Unidos, foi professora visitante nas Universidades de Wisconsin e Bloomington, e em Israel, na Universidade Hebraica de Jerusalém, desde sua nomeação como embaixadora do México naquele país em 1971 até sua morte em 1974.
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| Rosario Castellanos. Foto: Rogelio Cuéllar |
Rosario Castellanos cultivou todos os gêneros literários, especialmente a poesia, a ficção e o ensaio, e contribuiu com contos, poemas, resenhas literárias e artigos de diversos tipos para os suplementos culturais dos principais jornais e revistas especializadas do seu país e do exterior. Durante muitos anos, foi colaboradora assídua da página de opinião do jornal Excélsior e secretária do PEN Clube.
Sua obra literária recebeu inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Chiapas por Balón Canán, um dos seus principais livros³, e o Prêmio Xavier Villaurrutia por Ciudad Real. Posteriormente, recebeu o Prêmio Sor Juana Inés de la Cruz, o Prêmio Carlos Trouyet e o Prêmio Elías Sourasky.
Ela iniciou sua carreira literária como poeta e entre 1948 e 1955 publicou majoritariamente poesia. Como chegou a afirmar, considerava o poema “uma tentativa de alcançar a raiz das coisas” por meio da metáfora. Em 1972, a autora chegou a reunir toda a sua obra poética no volume intitulado Poesía no eres tú.
O já referido Balón Canán foi o seu primeiro romance; obteve inúmeras edições e foi traduzido para diversos idiomas. Este livro, juntamente com Ciudad Real, sua primeira publicação de contos, e Oficio de tinieblas, seu segundo romance, formam a mais importante trilogia indigenista da narrativa mexicana do século XX. Los convidados de agosto, o segundo livro de contos, recria os preconceitos da classe média provinciana em seu estado natal, e Álbum de família, o terceiro e último nesse gênero, os da classe média urbana.
Desde 1950, ano em que publicou a tese Sobre cultura femenina, Castellanos nunca deixou de explorar o ensaio. Foram cinco volumes que reúnem textos neste gênero e adjacentes.⁴ O tema evidenciado no livro antes referido se nota ao longo de sua obra, incluindo a única peça de teatro, El eterno femenino, em que emerge uma clara consciência do problema que a dupla condição de ser mulher e mexicana representa para a autora. Ela se recusou a renunciar a qualquer coisa, embora nada tenha sido fácil.
Apaixonou-se pelo filósofo Ricardo Guerra, com quem se casou em 1958, mas ele nunca retribuiu seus sentimentos como gostaria e mereceria. As constantes infidelidades do marido e a falta de amor no relacionamento levaram-na a múltiplos episódios de depressão, tratamentos psiquiátricos e até mesmo uma tentativa de suicídio. Contudo, foi somente no final da década de 1990 que tomou a decisão de se separar e avançou com o divórcio. Hoje, pode parecer-nos incompreensível como uma mulher de inteligência brilhante, rica cultura, prestígio profissional e social e independência econômica pôde suportar um relacionamento tão abertamente torturante por tantos anos. Mas a verdade é que nunca devemos cometer o erro de julgar o passado com os olhos do presente.
Esse paradoxo da vida de Castellanos apenas nos dá uma ideia de até que ponto somos todos, no sentido proposto por Ortega y Gasset, invariavelmente filhos do nosso tempo, bem como do número de contradições, pressões e culpas induzidas às quais essa grande poeta deve ter sido submetida. Muito significativo, por exemplo, é o seu poema “El despojo”, do livro Lívida luz, no qual verbaliza sua perplexidade diante as instruções contraditórias e frágeis que recebeu para enfrentar um mundo no qual parece não ter lugar para ela: “Roubaram-me a razão do mundo/ e disseram-me: passe seus anos juntando/ este quebra-cabeça sem sentido./ Não há mais nada. Um ato é uma estátua quebrada./ Uma palavra é apenas/ a imagem distorcida num espelho. / [...] / Disseram-me: não procure. Você não perdeu nada./ E eu os vi de longe/ esconder o que roubam e se rirem.”
Toda a sua obra poética é de absoluta pureza e sinceridade; Rosario Castellanos não cultiva versos complacentes cujo brilho aspira a aplausos vãos ou bajulação fácil. Sua poesia, como a clareza à qual Claudio Rodríguez aludiu em Don de la ebriedad, “é um dom: não se encontra entre as coisas/ mas muito acima delas, e as ocupa/ fazendo delas sua própria vida e obra”.
Os versos de Rosario Castellanos brotam dos recônditos mais profundos de sua alma; são seus sentimentos e sabedoria regurgitados, repletos de verdade, e pulsam ao ritmo da terra, como só a verdadeira poesia pode ser. Nesse sentido, o poema “Entrevista de prensa”, de seu livro En la tierra de en medio, é exegético, metapoético e magistral. Reproduzo a primeira parte: “O jornalista pergunta, com a sagacidade/ que vem da habilidade de seu ofício:/ — Por que e para quê escreve?/ — Mas senhor, é óbvio. Porque alguém/ (quando eu era pequena)/ disse que gente como eu não existe./ Porque seu corpo não projeta sombra,/ porque não acrescenta peso à balança,/ porque seu nome está entre os que são esquecidos./ E então... Mas não, não é tão simples./ Escrevo porque, um dia, quando adolescente,/ me inclinei diante de um espelho e não havia ninguém lá./ Percebe? O vazio. E ao meu lado os outros/ transbordavam importância.”
Sua poesia é de expressão extremamente livre e nela cabe a angústia, a amargura, o humor negro, a meditação, a consciência, a solidão, a frustração, a audácia e a capacidade de rir de tudo e de todos, a começar por si mesma. Conhecendo seus estudos em filosofia, essa tendência à reflexão e ao pensamento que caracteriza muitos de seus versos (e da sua obra) se encaixa perfeitamente, sem que a emoção e a intuição deixem de estar presentes.
Em seu poema “Diálogo del sabio y su discípulo”, extraído de seu livro Al pie de la letra, Castellanos aborda o complexo problema da identidade e a construção fictícia do eu, a partir da clarividente consciência cósmica da unidade que possui: “— Quando dizemos ‘eu’ / amarramos uma redonda vogal em volta do pescoço,/ um laço de se enforcar; perfuramos/ o nariz com um aro como o que cinge o boi;/ prendemos à corrente do prisioneiro./ Círculo de exclusão, quebre-o, salte-o./ Seus olhos são poliédricos como os da vespa./ Quando olha para eles, o mundo se estilhaça./ [...]/ Não estás sozinho e isolado./ Feres a Deus; o universo/ se faz pequeno em si; torna-se cego, bêbado./ [...]/ Onde, para apontar a flecha, está o seu centro?/ Em quem a morte te matará?/ — Naqueles que amo.”
Entre suas leituras favoritas, Rosario Castellanos frequentemente referia os poemas pré-hispânicos Popol Vuh, registro da cultura maia, e Chilam Balam, conjunto de poemas do povo maia, ramo iucateco, em que se denuncia entre outros temas os males trazidos pelo colonizador espanhol; também citava a poesia de Sor Juana Inés de la Cruz e de Pedro Calderón de la Barca.
Rosario Castellanos morreu em agosto de 1974 em sua casa em Tel Aviv em um infeliz acidente doméstico: eletrocutada quando foi acender uma lâmpada com as mãos molhadas na pressa para atender ao telefone depois de sair do banho. Ela ainda não tinha completado cinquenta anos. Sua morte causou um abalo entre os intelectuais mexicanos. Após uma homenagem no Palácio de Belas Artes, seus restos mortais foram sepultados na Rotunda das Pessoas Ilustres, na Cidade do México.
Ao saber dessa morte, o poeta e grande amigo Jaime Sabines escreveu um poema pungente e intenso intitulado “Recado para Rosario Castellanos”: “Só uma boba poderia dedicar sua vida à/ solidão e ao amor.// Só uma boba poderia morrer ao tocar uma lâmpada,// se lâmpada acesa,/ desperdiçada lâmpada de dia eras tu. […]// Como dói, te digo, que te tragam,/ te firmem, te coloquem, te manejem/ te levem de honra em honra funerárias!” Deixo uma última recomendação: não hesitem em mergulhar na obra poética de Rosario Castellanos. Acreditem, sua mente e seu coração agradecerão.
Notas da tradução:
1 Jaime Sabines (1926-1999). Foi poeta com vasta obra publicada e reconhecida dentro e fora do México; Octavio Paz o considerava o mais proeminente nome da poesia contemporâneo da sua geração. Além da atividade literária, como outros de seu tempo, se integrou à vida política: entre 1976 e 1979 exerceu o mandato de deputado federal pelo Primeiro Distrito de Chiapas e pelo Distrito Federal em 1988.
2 Efraín Bartolomé (1954-) também é poeta. Desde a estreia na literatura na década de 1980, publicou mais de quatro dezenas de títulos. Foi professor na Universidade Autónoma do México. É possível conhecer algo da sua obra no livro Música Luar (Trad. Magno Reis e Maria Antonieta Flores, Editora Cone Sul, 2001).
3 Também o primeiro livro da escritora publicado no Brasil; Balún Canán (Trad. Silvia Massimini Felix, Editora Pinard, 2025). Disponível aqui.
4 El uso de la palabra com alguns dos artigos publicados em Excélsior; em 2004, Andrea Reys organiza o restante dos volumes com o título de Mujer de palabras: artículos rescatados de Rosario Castellanos que reúnem 517 textos entre artigos e ensaios que circularam em diferentes meios.
* Este texto é a tradução de uma parte de “Rosario Castellanos: la inteligencia como única arma” publicado na edição 738 dos Cuadernos Hispanoamericanos, dez. 2011, p.121-129.


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