Dom Casmurro, de Machado de Assis

Por Pedro Fernandes

Machado de Assis. Fototipia publicada em O Álbum, 1893.



“Os instantes do Diabo intercalam-se nos minutos de Deus.”
 
A vasta, rica e instigante bibliografia sobre Dom Casmurro, bem como a naturalização popular de um romance que, inusitadamente, quase se imiscuiu no imaginário do leitor brasileiro é possível que muitos o tenham lido só de ouvir falar sobre o enigma amoroso proposto pelo narrador coloca qualquer novo texto sobre este romance em pelo menos um impasse: a fatalidade de nada acrescentar ao que já foi dito. Não é que a obra esteja esgotada passado mais de um século de existência, mas, nesse caso específico, as fronteiras de interpretação estão todas descobertas e algumas determinadas e, assim como a verdade segundo a qual a terra é redonda, inquestionáveis.
 
Machado de Assis foi um exímio criador. Explorou como ninguém as várias possibilidades de estabelecimento de um enigma, a força motriz de grande parte de seus textos mais conhecidos. Lidou naturalmente com o limiar e a dissimulação da palavra, ao ponto de séculos depois continuar arrastando inocências para a confiança dos seus narradores sempre suspeitos. O narrador é, dentre as categorias narrativas, a mais bem trabalhada pelo Bruxo do Cosme Velho e, apesar de muitas das suas reinvenções serem copiadas, jamais foram superadas pelos escritores que vieram depois dele. E há nessa relação entre o enunciador e o discurso ficcional não uma sobreposição entre aquele e este; o escritor conhece a medida exata do equilíbrio entre as partes. Quer dizer, o narrador é apenas um dos princípios criativos cujo protagonismo se oferece pela maneira como conduz a narração ou pelo lugar excepcional ocupado na narrativa, como é o caso célebre de Memórias póstumas de Brás Cubas, romance singularizado pelo autor-defunto.
 
Em Dom Casmurro, o princípio da sedução, traço que envolve todas as situações narrativas das personagens que formam a dorsal da narração, se produz pela rápida intimidade forjada pelo narrador de conversa despretensiosa, muitas vezes galhofeira e alheia a determinados virtuosismos de linguagem. Entre o início e o final da narrativa, se mantivermos o distanciamento e a suspeita com os quais somos educados na escola da crítica literária, percebemos claramente a escalada do grau de intimidade do narrador para com a quem ele conta; se num primeiro momento esse outro sequer aparece enunciado, à medida que avançamos, percebemos que ele é logo o motivo do narrador que deixa de ser o fulano que contará abertamente sua história para contar a história que seu ouvinte gostaria de ouvir. Entre uma e outra se forja uma terceira: a história possível.
 
Dos vários capítulos que funcionam como introduções do capítulo posterior, conforme nota o narrador de Dom Casmurro, o 119, “Não faça isso, querida!”, é o que melhor justifica os apontamentos do parágrafo anterior: “A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje”, diz, “quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.” Aqui apresenta-se não apenas a determinação do narratário, o leitor implícito na conversa desenvolvida no âmbito da ficção, como o progressivo afastamento da verdade possível para verdade narrada.  No capítulo anterior, “A mão de Sancha”, Dom Casmurro se dedica a longamente divagar sobre as evidências de uma sedução amorosa entre a mulher do seu melhor amigo e ele; o empenho é tanto que, o ouvinte ingênuo poderá acreditar que no passo seguinte o narrador contará do envolvimento e destilará as cores de uma tragédia, o que não acontece. O sugerido, entretanto, está posto, mas o ouvinte ingênuo envolvido pela atmosfera forjada pelo contador apenas reafirmará a ilusão da sinceridade de um homem que, taciturno e fechado consigo mesmo, encontra-se continuamente indisposto a dizer tudo sobre si.
 
Este excerto não revela apenas um instante da narrativa; conjugado ao andamento da história, ele é ilustrativo para uma compreensão desse romance não como revelação, o que pode parecer à primeira vista, mas como dissimulação. A busca de Dom Casmurro é por uma biografia capaz de o igualar aos grandes homens da história, mas ao se aproximar do vivido verifica que não existe grande história; toda a vida é uma miséria, um terrível blefe, uma tentativa de aproximação às projeções que fazemos mas sempre distanciamentos e, por sua vez, um fracasso. As biografias são um consolo que nos permite eternizar o engano da glória. Desde essa descoberta, realizada ante as pinturas que ilustram as paredes de sua casa e a deslindar da narrativa, o narrador se dedica a preencher sua solidão enquanto houver tinta e papel emendando e remendando seu próprio retrato.



 
Isso implica dizer que tudo o que aí se pinta é tão natural quanto os afrescos de César, Augusto, Nero e Massinissa, reproduções de reproduções da antiga casa da Rua de Mata-Cavalos. O gênio de Machado de Assis leva a dissimulação ao limite neste romance. E, uma vez falarmos sobre retratos e sobre dissimulação, é notável como aqueles objetos guardam uma onipresença em Dom Casmurro: a princípio, é o retrato de casamento dos pais de Bento (o Casmurro) – a descrição dessa fotografia contém pelo seu oposto o destino do casal Bento e a mulher pela qual guarda obsessão, “O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade”, isto é, o retrato simula o amor como um negócio determinado pelas convenções sociais; depois, é a reiteração de Capitu na imagem da jovem mãe de sua melhor amiga – a referida Sancha; mais tarde, é o retrato de Escobar, o da amizade nascida no ano de seminário, o gatilho e o fantasma que o acompanha nas certezas da estreita parecença entre Bento e Ezequiel, seu único filho com Capitu. Em todos os casos, se o retrato revela a personagem figurada, também a dissimula, visto que estabelece relações com o de fora em todos os limites da figuração, ao evidenciar não apenas o retratado, mas o seu semelhante.
 
A obsessão de Bento por Capitu é, junto com o designativo de Casmurro, a maior dissimulação desse romance. As duas condições são adotadas de terceiros: é depois de escutar a preocupação do agregado José Dias sobre a relação dos dois adolescentes enquanto a mãe remancha em internar o filho para fazê-lo cumprir a promessa aquando o nascimento dele, que o próprio Bentinho passa a reparar na amiga vizinha com olhos de homem e logo a converte numa ilusão amorosa; e é numa viagem entre a cidade e o Engenho Novo que recebe o apelido de um ambulante fazedor de versos e toma-o para isso evidenciando uma cisão que visa se sobrepor ao Bento Santiago. Quer dizer, a conturbada relação entre verdade e invenção é a força integral desse romance; singular nesse sentido é próprio Ezequiel com seu modismo infantil de arremedar os outros. Dom Casmurro e o romance são eles mesmos um arremedo: ele dos homens de nome, a obra das memórias desses homens e das histórias românticas – nesse caso, muito à maneira de O seminarista, de Bernardo Guimarães, em que a decisão familiar pelo filho padre afeta diretamente a felicidade recém-descoberta dos amantes.
 
É indispensável notar que a característica que mais perturba a Bentinho e também a que ele mais admira, porque não sabe executá-la com a precisão necessária, é a capacidade prática com a qual Capitu dissimula as situações. Essa descoberta se confunde com o acontecimento da compreensão sobre a atração amorosa entre os dois: Capitu risca qualquer coisa no muro de casa quando é, primeiramente flagrada pelo amigo, a quem faz acreditar naquilo que os sentidos dele acabavam de saber, e depois, disfarça para pai toda cena de qualquer romantismo entre os dois. Esses episódios são variados e sobre todos, o que chama a atenção do criançola é autenticidade da dissimulação, gesto, admitido pela própria Capitu para que os adultos não reparem no imbróglio entre eles. A partir desse primeiro momento, as memórias são integralmente voltadas para compreender esse elemento singular que se repete mais tarde, por extensão, ao amigo Escobar, à mulher com a qual este se casa, a amiga íntima de Capitu, Sancha, e ao próprio filho, Ezequiel.
 
Tudo isso confirma que ao inventariar suas memórias Dom Casmurro busca construir uma explicação para si sobre um episódio com consumiu toda sua existência; é um testamento de defesa, o que se evidencia desde a menção dos medalhões que ocupam as paredes da sala principal de sua casa a passagens com a 50, “Entre luz e fusco”, que revela toda perspicácia jurídica desse homem: “Oh! Minha doce companheira de meninice, eu era puro e puro fiquei, e puro entrei na aula do São José, a busca de aparência e investidura sacerdotal e, antes dela, a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.” Aqui, o narrador se defende de qualquer culpa em relação à ruptura do juramento adolescente de que estariam dali a pouco, sem passar pelo seminário, casados.
 
Ou seja, Bento / Casmurro escreve essas memórias para recuperar uma honra ou uma consciência sobre si próprio em relação ao seu passado; incapaz de alcançá-lo, ou melhor, ciente de que alcançá-lo significa sua inteira revelação, e esta é inalcançável, todo o trabalho que passa a desenvolver é o de ocultar, calar, abafar, camuflar, cobrir, disfarçar alguma coisa, gestos que são em parte tentativas de aproximação do vivido, em parte o vivido projetado para a memória. Nesse ínterim, todas as suspeitas foram levantadas e confirmadas pela narrativa: incluindo o mais trivial debate da traição ou não de Capitu. Se por um lado essa discussão estabelece uma perenidade para a própria obra, por outro evidencia seguramente que o leitor foi fisgado pelos truques da narração. Os ciúmes toldam qualquer visão e a luta do enciumado é com sombras; nesse sentido é singular a contínua transformação do amigo de estima em fantasma reencarnado nas feições do próprio filho.
 
Mas, o caso é que sendo este um romance devotado a observar os movimentos de sua própria atuação todo o jogo machadiano se confunde com o próprio jogo do seu narrador. O embate homem-sombra, homem-fantasma, de certo modo metaforiza o embate escritor-realidade; Dom Casmurro se justifica como uma afirmação da ficção enquanto uma realidade particular, com regras e variáveis de funcionamento próprias, modificáveis à medida dos interesses dos que nela se envolvem. Em “Querido opúsculo”, o narrador troça da arte de escrever; sua argumentação é justificativa sobre o que dizemos: ele diz preferir os livros que deixam lacunas porque estas são trabalho para o leitor. Vislumbra-se, então, o que tem sido o grande exame da literatura desde sempre: dizer o possível, não o acontecido.
 
Dissimular é um dos princípios básicos para a construção dos objetos de ficção, mas para que estes existam presume-se uma consciência imaginativa. Dissimular é ainda uma condição básica para existir; só os capazes desse verbo conseguem existir plenamente, os que não, se angustiam, se amarguram, se matam. Bentinho é sempre o que muito imagina, mas sua capacidade de inventar parece se refrear pelos limites a ele impostos pela família, pela religião. Assim, dissimular, a atitude alentada de uma vida é tentada pela última vez na execução da escrita de Dom Casmurro.
 
E, agora, ao que parece, um exercício em parte logrado, afinal, significativa quantidade dos leitores permanece enredada pela história de amor adolescente que este romance não é, deixando de reparar que é uma presa enrodilhada numa ardilosa armadilha fabricada com o interesse de, ao mostrar, velar, ao velar, mostrar. O curioso é que tal gesto é dos mais usuais desde sempre na história humana tão antigo quanto o diálogo de Adão e Eva, para outra vez citar Memórias póstumas , entretanto, misteriosamente, quando somos colocados diante de suas diretrizes, algo nos escapa e deixamos de perceber seu funcionamento. 

Ou seja, está nisso, provavelmente, a melhor das provas sobre a impossibilidade de alcançar a vida como autenticidade. Esta só existe enquanto dissimulação. É apenas a ilusão e sobre a qual ignoramos suas regras; não porque queremos, mas simplesmente porque quando julgamos conhecê-las, passam já outra vez para o desconhecido, essa sombra que continuamente nos perturba e nos obriga a continuamente tentar outra alternativa de acesso a elas. Entre Deus e Diabo, a vida é instante deste com alguns minutos Daquele, com o agravante: esses minutos são a pura ilusão do autêntico, esta com a qual o Casmurro se/ nos entretém.

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