Os 60 anos de 10 dias de uma viagem que deu novos rumos à Literatura Brasileira (Parte 2)


Por Pedro Fernandes

Ouvir as histórias dos dois vaqueiros, Manuelzão e Zito, é ouvir a toada da própria narrativa de Guimarães Rosa. Entendam aí a razão que alguns trabalhos oriundos de outros têm a importância que têm. Em termos de ritmo narrativo, sabemos todos que, cada escritor compõe o seu e, às vezes basta ouvi-lo ou ouvir um intérprete para darmos conta disso. 

O próprio Saramago conta nos seus Cadernos de Lanzarote da experiência que teve quando veio ao Brasil e foi convidado a assistir junto a um pequeno público num restrito espaço teatral uma adaptação para o seu O conto da ilha desconhecida. O conto com a interpretação de um texto que, segundo o escritor, jamais havia sido pensado para o teatro, levou-o a conclusão de que a sua narrativa encarnava o poder da oralidade com tamanha particularidade que reconheceu que sua escrita para ser melhor compreendida havia que ser lida em voz alta. Não que o escritor já não acreditasse nisso, mas contato com a expressão oral do texto escrito lhe deu subsídios para entender melhor o poder ativo da palavra verbalizada.



Pois, eu já ouvira mestres em Guimarães Rosa dizer do poder oral na narrativa do escritor. Só não compreendia a razão de ser a oralidade nele um traço tão marcado pela pausa; por uma limitação quase que forçada da palavra. É possível que esse movimento deixe o leitor como me deixou, um tanto irritado, pela excessividade das paradas e a sensação de que estamos o tempo inteiro no mesmo ponto, que não avançamos.

Agora, conto como tive acesso a esse tom na sua origem. Não tive de viajar ao interior de Minas Gerais. Apenas dei com um curta, Veredas de Minas, produzido pelo também escritor e cineasta (ele gravou vários documentários, digamos assim, literários) Fernando Sabino. O curta traz as falas das duas personagens que citei na abertura destas notas e que foram as companhias mais próximas de Guimarães Rosa na sua empreitada pelo sertão mineiro. Ambos, já sabemos, vieram tornar-se, primeiro, protagonistas da gênese de um dos maiores títulos da literatura brasileira, Grande sertão: veredas, segundo, personagens da própria literatura de Rosa; um deles até nomeia um dos seus trabalhos, Manuelzão e Miguilim, livro desmembrado da novela Um estória de amor, escrita quatro anos depois da viagem de 1952.

Manuel Nardi, o real nome do vaqueiro que deu margem à criação de Manuelzão, personagem de Guimarães Rosa. O encontro entre ele e o escritor aconteceu na histórica comitiva que cavalgou 240 quilômetros em 10 dias, da Fazenda Sirga, na cidade de Três Marias, à Fazenda São Francisco, em Araçaí, Minas Gerais. Foram, ao todo, 19 dias de convivência com o escritor, incluindo a preparação para a viagem. Manuelzão foi o único dos colegas que, no decorrer e depois da viagem, deixou-se gravar e contou boa parte de seus causos ao escritor. Foto: Revista Época.


Se Manuelzão ocupou a figura do capataz na comitiva dos vaqueiros, Zito, o cozinheiro, também foi outro com quem o escritor mais teve proximidade: “Ele queria saber de tudo. Se visse aquele pau ali, queria saber o nome dele. Se ouvisse uma conversa, queria saber do que a gente falava. E ia escrevendo tudo nas cadernetas que levava penduradas no pescoço”, confidenciou certa vez o vaqueiro, numa das conversas que manteve com o repórter João Correia Filho, da revista Planeta, em edição de julho de 2008, ano em que se fechou o primeiro centenário de Rosa.

Da viagem de 1952, Zito deixou um pequeno caderno escolar em que está registrado o cotidiano dos 10 dias que passaram no sertão mineiro.

Veredas de Minas mostra esses dois homens do sertão. Nele, Manuelzão e Zito relembram passagens ao lado do criador de Grande sertão: veredas;  inclui trechos de filmes inspirados no escritor – de Paulo Thiago, Maurice Capovilla e Roberto Santos – e imagens de sua Cordisburgo, a cidade natal, e fotos da posse na Academia Brasileira de Letras, dias antes de sua morte.



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