O Crédito é da Cor
Por Cesar Kiraly
§ se algum dia lhe faltarem as moedas para molhar as ossudas
mãos do velho Caronte. por esquecimento ou por mesquinharia. se o homem dos
ritos fúnebres as roubar. & o bom barqueiro te propuser uma pergunta em
troca. lembre que recusou os jogos que te propus. enquanto eu te esperava /
estivera sempre de livro aberto / um animal a lamber as patas para pentear o
rosto
§ ela acreditava que o passado não a buscaria. por isso
andava resoluta para fora de casa. as sobrancelhas finas. o vestido florido bem
assentado no corpo bonito, delimitado na cintura. poderia andar sem culpa, sem
medo, imbatível contra todos os destinos que o mundo poderia pensar para ela.
eles não ficariam roxos de serem agarrados sem vontade, seus braços brancos
teriam as marcas doces e vermelhas de dedos que a puxariam mais para perto. ela
resistiria para dar aquele assentimento confuso próprio às coisas de amor.
apenas os cabelos cresceriam, como concessão à gravidade das coisas. se poderia
esperar o passado sem medo, olharia para o batente da porta e seria revisitada
por aquela menina de franja e cabelos negros e lisos, olhadora de baixo para
cima, sem precisar apertar o lábio. seria isso o desejo bem vivido, o retorno
da criança, sem dor.
§ se minha dor estivesse toda no meu nome, quantas letras
ele teria? que absurdo [...] que absurdo [...]
§ ela sabia a inatividade bem diferente da preguiça. era
capaz de olhar a própria sombra por horas a fio & mesmo que não tivesse
movido um músculo se estafava como carregadora de sacos de areia. depois pagava
o preço por essa atenção obsessiva e dormia quase um dia inteiro. mesmo que
desconfiasse estar deprimida, no segundo depois, lembrava que um espírito não
podia suportar tanto tempo perceber apenas um objeto, sem sofrer severas
consequências. era o preço a se pagar por olhos tão bem constituídos. ria de
si, quando assim pensava.
§ os cabelos caídos sobre o ombro / forçava um pouco o
perfil & notava a contração dos lábios toda vez que uma sombra era
produzida pela intromissão de uma nuvem no sol que entrava pela janela. alguns
de seus músculos finos reagiam involuntariamente toda vez que a silhueta
morria.
§ passava a mão no maço de cigarros em cima da mesa /
desistia e o esfregava pelo corpo para encontrar um bolso em que metê-lo / até
que encontrava / cedo ou tarde / alguma invaginação se organizava para não
frustrar aquela necessidade de abrigo / podiam ser floridos / neutros / um
terno / depois voltava para a mesa / de novo / toda aquela busca / todo aquele
desamparo / a caixa com os fósforos / a abertura deslizante / todos mortinhos /
enfileirados como soldados de madeira / qual deles será sacrificado por ter um
idéia? / qual deles? / quase pode ouvir a confabulação acelerada dos condenados
à morte / a última lembrança que teriam / antes das chamas / antes dos cabelos
pintados de vermelho /
§ política é quando o girassol vira de costas.
§ a luz rouba todo o crédito da cor.
§ ela era como a fotografia, devia tudo ao quarto escuro.
§ o meu olho nu está mais vestido que o seu.
§ não só nos cantos
mas nos olhos, Lúcio percebia o
reflexo todo dos pinheiros de copa
arredondada – por que isso tem que
acabar – ele se perguntava. mas
ainda com todas as incertezas, mesmo
com todas elas – como o calor do verão –
sussurrava – sabia não existirem mais
girassóis, pois apenas a lua, a luna.
§ anestesiado, ora, tudo parece tão ridículo.
essa indiferença, não te cai bem.
§ por que os desprezo? porque os escritores, como os intelectuais
– e não os poetas – estão a espera de seus depoimentos animados por trilhas
sonoras.
§ a mancha do meu sangue, seria um quadrado vermelho.
§ depois de todos esses anos querendo vê-lo sem poder,
abortei o nosso filho. daí decidi que nada faz sentido. nada faz sentido no
mundo, exceto algumas coisas: cigarro, cachorro, máquina de escrever, telefone
& acho que é só. ah sim, ser só faz sentido. apenas as existências de olhar
infinito fazem sentido. vê como este vira-latas olha para o nada? ele sabe das
coisas. sempre olho para alguma coisa / estou demais perdida / estão todos
olhando para alguma coisa / estão todos perdidos / menos este bichano aqui / de
pelo curto / as orelhas caídas não são demonstração alguma de submissão, mas
rastreamento atômico de movimentos tectônicos.
§ clarice,
eu te queria assim palíndroma
australopiteca na ida e na volta
§ é preciso que a imagem se desgaste.
§ eu já conheço um Lúcio, ele acordava tarde, como acordou
hoje, demorava a entrar em algum estado tolerante com a humanidade, com o que
me fingia assustada. este Lúcio que conheci me dizia que se eu mordesse o lábio
de leve, não significaria nada, mas se o fizesse até o fim, talvez fosse alguma
coisa. se eu usasse uma arma de fogo, e com ela disparasse à cabeça, isso
significaria tudo ou nada. este Lúcio, este Meu Lúcio, era dado a momentos de
credulidade e aforismava as religiões se apresentarem ébrias no desgaste das
cadeiras, dos assentos. ele dizia ser necessário resistir à embriaguez, buscar
iluminação nos improváveis olhos verdes ou azuis da atendente nova de seu
boteco preferido. dizia ser necessário buscar luz em Luzia. então, pronto, ele
me fazia rir com isso, cantarolava alguma triste letra de samba e não sabia o
porquê do embargo da minha voz; mas me parecia óbvio, eu precisava resistir,
como se fosse um mandamento evitar a espontânea combustão que ele significava,
mesmo que fosse assim mesmo, sem vírgula.
§ ser incompreensível era a sua rebeldia.
§ como assim? você não pode simplesmente chegar aqui e dizer
que não morde.
§ como agir certo, quando não há propriamente uma polaridade
entre o acerto e o erro? – pensavam juntos – haveria uma forma de ação pelo
acúmulo? vários fragmentos de espera, acumulados / emaranhados como um conjunto
de linhas ou cabelos? tal mimetismo resolveria o lado para qual seguir,
resolvendo a incidência do acerto? resolveria sob qual princípio; peso? – Lúcio
passaria a mão nos cabelos e sentaria no meio fio, enquanto Clarice cruzaria as
pernas, virando para o lado da rua, triscando o fósforo na caixa, mas sem
acender – o melhor é admitir que o princípio é o vento. sua arbitrariedade
levaria o novelo de angústias de um lado para outro, espalhando qualquer
vontade de permanência ou de destruição. – Ai, eu só queria estar em casa – ele pensou arfando o ar gelado da rua de olhos
pousados sobre o raio da bicicleta. a certeza era de que não se esperava por
nada naquele ambiente, tratava-se de uma calçada de esperar não ter. os que
esperavam eram ventados para longe de seus brinquedos queridos e os
piromaníacos recebiam um novelo denso, pesado, com um pedregulho no meio. – mas
não haveria alguma ironia implícita em não se entregar somente aquilo que se
deseja? – indagaria Clarice, acertando o fogo feito – ora, ora, – ele circunda
os botões do colete e pousa a mão sobre o joelho do menino sentado a seu lado –
o antianatômico no corpo equivale ao segredos da alma, sabe bem disso, as
formas da alma e as contraturas do corpo são imagens uma das outras. Clarice
pensa que poderia fotografar Lúcio do outro lado da rua, bem de perto ao aro de
bicicleta, sobre o qual ele pousa os olhos, e que poderia chamar a foto de um instante
antes do raio.
§ depois de ler os seus papéis, entrar em contato com a
lógica das suas escolhas, seria assim, eu diria não saber mais escrever,
haveria apenas a sua intuição afiada pela perda, & mesmo que eu também
tivesse perdido, como era bom me distrair das minhas quedas. não adiantaria
muito me dizer ser injustiça, reciprocidade fendida, porque não me intrometer na
manutenção da sua dor, suspiro, pode ter sido o que desenvolvi de mais doce.
para cada curva que desenhasse, para cada fenda transversal infida, eu me
despediria séria de uma friorenta espinha, se para os outros soprava um frio
mesquinho, em mim seriam sempre dobras, quebras / fraturas de cotovelo / uma
década de reposição por pinos, recuperação lenta, aprender a andar de novo, sapatos
planos, nunca mais ser a mesma, derreter novamente os canhões até se
relembrarem sinos / apenas tudo isso vermelho / preto & branco / te olhando
de baixo para cima /
§ tudo começa num .
***
Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e do IUPERJ. Além disso é autor de livros de poesia e de ensaios. Edita, com Pedro Fernandes, o caderno-revista de poesia 7faces.
Comentários