A ilha da infância, de Karl Ove Knausgård

Por Pedro Fernandes



A infância vista pelos olhos de um adulto. Talvez com esta frase o leitor consiga resumir as mais de quatro centenas de páginas do terceiro volume de Minha luta, título que, aos poucos revela a razão de enfeixar esse grupo de livros: trata-se de uma luta constante do autor com suas memórias, e, por mais limpas que elas pareçam aos nossos olhos não deixam de terem sido forjadas por uma potente força imaginativa. É evidente que essa nuance da criação a partir da matéria memorialística já se revelara para o leitor desde os primeiros títulos, A morte do pai e Um outro amor. Mas, nestes dois volumes estávamos ante um narrador envolvido com acontecimentos muito recentes ou de períodos da vida sobre os quais todos carregamos conosco mais ou menos nitidamente situações e impressões. Neste A ilha da infância, não.

E, Knausgård é muito sincero, ou se utiliza dessa premissa, assim como do forte detalhismo, para nos colocar diante da verdade do narrado, sem dúvidas, o exercício de sempre de qualquer bom escritor: isto é, modelar realidades com as quais o leitor possa se apegar como elementos que se integrem aos seus próprios mundos e refaça algumas das suas impressões particulares sobre o que lhe rodeia. Apesar de ter ao alcance sempre a matéria do vivido – que é a base explícita de qualquer texto de cunho autobiográfico – nunca é demais lembrar que o segredo para não jogar fora esse trunfo constitutivo da verdade sempre recairá na forma como o escritor elabora esta construção. E para se desligar da questão mais simples que poderia levantar o leitor mais incauto sobre a capacidade de lembrar de situações da pequena infância, o autor trata de esclarecer, não sem antes incitar um passeio pela zona do inventado (que é a situação de mudança dos pais para o reduto onde o escritor viveu quando criança) que parte dos episódios são construções a partir de fotografias ou deve começar a se tornar mais claro certos fatos a partir dos episódios esparsos que é capaz de lembrar desde os seis sete anos de idade.

Assim, aos saltos, como quem admira retratos, Knausgård reconstrói uma parte que estava ainda por ser descoberta do leitor (em A morte do pai, a narrativa se concentra entre esse acontecimento e adolescência e aqui já alcançamos uma relação muito conturbada entre filho e pai; em Um outro amor estamos ao lado do Knausgård adulto, no início da carreira de escritor, em  busca de um lar ideal e tendo de conviver com as descobertas de ser pai) e as brechas que deixa nesse extenso mural são aquelas que ele próprio não tem possibilidade de preencher.

No procedimento de seleção do vivido na infância, concentra-se na convivência com os da casa: novamente o pai adquire uma predominância em boa parte do romance, a mãe, o irmão mais velho e os amigos. Depois, utiliza-se do convívio escolar como fio através do qual alinha (mas sem ser cronológico) os principais acontecimentos que o fizeram trânsito até os primeiros anos da adolescência cuja parte alcançamos alguma notícia em A morte do pai. Se Knausgård reafirma o caráter de não-linearidade da memória ou a necessidade de sempre nos apegarmos a situações concretas como as madeleines de Marcel Proust em Em busca do tempo perdido, há outro fator que se reinventa: a memória também não é superficial, mas subterrânea. Claro, somos por mais precisos que alcançarmos ser, incapazes de dizer sobre a totalidade de nossas vidas. Uma parte disso porque não temos condições suficientes para armazenar o mínimo detalhe como se revela em Knausgård; outra parte porque nem tudo o que vivemos se constitui em matéria de importância para nós mesmos.

No retorno à infância, Knausgård constrói para o leitor um estranho espelho para o qual ele se mira e nós todos nos miramos que é a infância sua, mas contada de uma maneira que se confunde com a infância de todos nós; ao menos da criança que teve a certa dose de liberdade, criada numa condição diferente das dos estranhos cubículos urbanos que caracterizam as moradias de grande parte dos habitantes das cidades brasileiras depois dos anos 1990. Quando digo isso, refiro-me à parte de algumas situações elencadas; outra grande parte delas só existem para os que estiveram imberbe num hábitat como o relatado por Knausgård – habitante de um mundo semiurbano, talhado pelo silêncio ensurdecedor do trauma do pós-guerra e mantido por uma sede de reorganização da comunidade humana. É o que finda por escapar ao leitor sobre o país da infância do escritor ou o que há de histórico-político no romance.



Como leitor, toca-me, sobretudo, esses episódios que são (e muito) universais; porque, ao menos no meu caso, grande parte dos relatos, não pela competência com que foram escritos e sim pelo que revelam, parecem que foram escritos por mim. Além do que, é um elo de confiança tecido entre narrador e leitor indissipável. Se havia na literatura universal alguma brecha a ser preenchida sobre num exercício autobiográfico, Knausgård acabou de desfazê-la; daí para adiante será sempre mais difícil qualquer um falar da própria infância. Sim, os episódios transcriados numa perspectiva universalista se colocam como a contribuição a um mundo cujos sentimentos e perspectivas já foram expostos e examinados de maneira diversa seja pelo cotejo da memória ficcionada seja pelo da ficção, renovando-se, claramente, por vezes como se um tratado de perspectivas freudianas ou do que foi incursionado pela psicanálise na leitura sobre a infância.  

Não é, no entanto, um livro saudosista. Knausgård zela pela construção de uma visão quase-neutra sobre o sentimento com o tempo evocado. Entre o episódico e o sentimento sobre esse período da vida, o escritor revela, possivelmente sem querer porque não estamos diante de uma consciência divina, que a infância é, no tocante às experiências sobre si e sobre o mundo, a fase da vida em que, como humanos, mais somos próximos. Talvez porque a inocência sobre o mundo é como se uma forma única para todos e principalmente pela capacidade que temos de tornar pequenos episódios em dimensões sem fronteiras.

Também nos revela como são distintas (e distantes) são essas fases (a infância, a adolescência e quando adultos) e o quanto elas são sempre marcadas pelo processo de descoberta (na infância, por exemplo, descoberta do mundo, dos limites do corpo, das primeiras relações de amizade), ou seja, forja-se através de Minha luta a tese de que a vida só tem sentido pela capacidade de nos interrogarmos sobre tudo. Ou ainda, como bem defende o narrador, cada fase de nossa vida é como se fosse uma vida independente, mesmo que possamos perscrutar determinados traços de uma para a realização da outra ou que o futuro seja produto do que fizemos no passado. Parece que uma existência destituída dessas duas condições ou em que essas condições tenham sido perdidas nos tornariam incapazes de resistir ante a certa falta de sentido que é o cíclico processo biológico de crescer, reproduzir e morrer.

Mesmo escapando do lugar comum do saudosismo com que outros testemunhos sobre o tempo de criança, Knausgård não deixa de imprimir um tom um tanto diverso daquilo que vem em construção desde A morte do pai; se aqui tem um tom mais próximo do trágico ou dramático porque a narrativa se funda, quer queria ou não, no tema do luto e da orfandade; se em Um outro amor, o tom dramático de novo se reafirma; A ilha da infância é um texto mais achegado ao cômico, mesmo que esse tom seja constantemente violado pelo drama da violência que sofre do pai e a formação de um ódio por uma figura cujo desejo parece se nutrir apenas de impor uma ordem de interdição para o filho.

Mas, no interregno do ódio, paradigmaticamente se forma a imagem de como – talvez imperceptivelmente – o narrador vai se assemelhando com pai: desde o gosto pela leitura e o zelo para com uma perfeição e a necessidade de ser revelar sempre como o que se destaca em tudo que faz. Sobre esse último aspecto, é notório o excesso (além daquilo que é tido como normal para essa fase da vida) em ser o centro das atenções. Um fio do artista que quer ser um reconhecido? Mesmo sendo um garoto que cada vez mais se aproxima de uma introjeção sobre o mundo e desempenhe as ações que lhe dariam o mérito para si, é o que sempre quer se mostrar como a revelação; ou ainda mesmo que, pela introjeção, se mostre um sujeito desastrado, é o que, como o pai, quer que os outros o reconheçam como revelação.

É preciso sublinhar ainda os primeiros contatos com a escrita ou a formação de um escritor, tema não desviado dos olhos do leitor desde o trabalho de elaboração criativa a fim de sair do estigma de autor de um romance só compartilhado em Um outro amor. A necessidade da leitura, desde o apego com as histórias em quadrinhos, depois a proibição do gênero por uma mãe tomada pela ideia de que as HQs estão infestadas de uma violência ofensiva à formação intelectual dos jovens e a vez dos livros, devorado às pencas nos fins de semana e antes de dormir; as primeiras redações na escola, o envolvimento com a música patrocinado pelo irmão, pelo pai e pelos colegas que resulta nas primeiras composições para uma banda de adolescentes fascinados pela estética do punk inglês. Tudo, evidentemente, assinalado pela natureza um tanto melancólica de um garoto detalhista e capaz de viver intensamente todos os acontecimentos – das brincadeiras ao dia-a-dia nos filmes, nas leituras e na vivência doméstica.

Ninguém poderá acusar Knausgård de ser incapaz de construir um enredo que prende de forma alucinada o leitor, seja pelo estilo limpo e direto, seja pela capacidade de nos seduzir pela maneira como consegue transformar o acontecimento mais simples ou insignificante em algo capaz de nos abrir outras portas de percepção sobre o mundo e o que nos cerca.

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