Um instante de amor, de Nicole Garcia
Por Pedro Fernandes
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Quem encontrar
Marion Cotillard em Rock’n roll. Por trás
da fama, fazendo papel de si mesma, como uma dedicada atriz sempre capaz de
tornar seu dia-a-dia outro para compor a vida de personagem significativa poderá
sondar quais exercícios terá cumprido para encontrar o espírito dessa figura do
romance de Milena Agus adaptado para o cinema por Nicole Garcia. A impressão é
apresentada aqui porque não é tarefa das mais fáceis assumir certo ar da
rebeldia adolescente num corpo de balzaquiana e é este o perfil de Gabrielle.
O contexto
dessa personagem é o do limiar entre as determinantes da tradição patriarcal,
onde às mulheres são delegadas as tarefas de zelo e subserviência ao marido e à
casa, e o nascimento de liberdade feminina fora desses moldes opressor. Não
bastasse isso, Gabrielle é a filha mais velha numa família de mulheres. Sem
pretendentes, porque os que conhecem seu temperamento não se aventuram a propor
casamento ou porque ela própria se coloca como a figura desmotivadora da
relação, o seu não-casamento é ainda um impeditivo para o casamento das irmãs,
uma vez que pelas rédeas da tradição há uma ordem cronológica a se zelar a fim
de se manter as harmonias esperadas para a família.
Sabedora de
que a política do bom partido não vingará com Gabrielle, a família decide,
então, em nome de não perder a manutenção do status quo ao qual se filiam passivamente as filhas mais novas,
entregar a responsabilidade sobre ela a um trabalhador de pouca instrução ciente
de que a força bruta do macho será a maneira mais ardilosa de resolver o
problema. Há aqui qualquer coisa de A
megera domada, de Shakespeare, ou de A
bela e a fera, de Gabrielle-Suzanne Barbot, com traços mais claros,
evidentemente da primeira, já que Gabrielle não tem nada de gentil e generosa
para com o pretendente, mas este, assume bem o papel de fera ante a beleza
igualmente impulsiva da personagem.
Gabrielle é
símbolo da mulher de seu tempo: impaciente com os modelos delegados pela sociedade
a elas, mas presa numa confusão que não as salvam totalmente da saída para a
independência feminina e sim para um acúmulo de papéis dentre os quais as
possibilidades de serem livres quando ante pequenas oportunidades se materializam
à sua frente. É por isso, seu perfil, o de uma subversiva.
Por exemplo,
se não é permitida a liberdade de escolha de sua companhia pelo amor ou mesmo a
escolha por ficar sozinha, porque a família é ainda o grande patrimônio dessa
sociedade, esta nova mulher, ensaiada, claro está com as mesmas tintas
disfarçadas do machismo, tem uma autonomia para as atividades domésticas; o
homem, ainda como provedor, é quem constrói um lar, mas este se é feito com os
gostos da mulher.
No caso de
Gabrielle, entretanto, há outro desvio e isso poderá lhe servir como falsa
sensação de domínio da situação ou garantia de insubmissão, mesmo que esta
resistência se restrinja a um exercício individual e aparentemente as feições
do casal tradicional se mantenha: é o fato de José, apesar de esforçado sujeito
para ser o provedor, ter uma dívida pessoal com a família da própria mulher,
afinal, é às custas dessa família que ele alcança as garantias financeiras de
prover o lar. Possivelmente por isso, dentre os pretendentes oferecidos a
Gabrielle e também porque guarda um amor intenso para com as irmãs esta aceita
se submeter ao convívio desse homem rude.
A narrativa
teria um fim aqui se não fosse oferecida à protagonista a possibilidade de
romper com o lugar-comum ao qual foi submetida – e, ironicamente – noutra
ocasião de oclusão da liberdade. Exigem de Gabrielle, ainda em nome da família,
que engravide; e, porque as primeiras tentativas são falhanços, receitam-lhe,
numa ocasião na qual se verifica como não só os modelos sociais mas os da ciência
são produtos para manutenção da condenação biológica da mulher, o internamento
num sanatório para tratamento a fim de desenvolver as faculdades maternas.
No
sanatório, Gabrielle poderá, depois de conhecer um militar retornado da guerra
e incapaz de existir num mundo adverso de sentido – isto é, num mundo em muito,
próximo ao experimentado pela personagem, mesmo que esta desconheça totalmente
os horrores da guerra – viver as pulsões de corpo através de uma nesga de
liberdade que não lhe é facultada: está num ambiente onde convivem homens e
mulheres, mesmo que os tratamentos sejam os mais variados.
É também nesta
ocasião que a narrativa alcança sua melhor parte, muito embora, o imbróglio das
situações assinaladas numa interrelação do acontecido pela possibilidade imaginativa
e mesmo com as infiltrações de ordem onírica, possam toldar a linearidade e mesmo
a certeza sobre os acontecimentos, o que dará a Um instante de amor um sentimento de confusão e mesmo de ruptura da
verossimilhança. É óbvio que a produção não alcança, por exemplo, o grau de complexidade,
para citar um excelente filme que lida com esses trânsitos entre o real
aparente e o real físico, de um Cisne negro,
mas não deixará de ser uma narrativa capaz de nos perturbar pela estranha
sensação da ilusão.
Parece que
se reafirma aqui ora a constatação de que as liberdades femininas então eram
apenas realizadas enquanto elucubrações, ora o princípio do sentimento amoroso
provado desde Platão: o de que o amor é uma ficção engendrada por nossa condição
imaginativa. Isto é, não amamos aquilo que o outro é realmente para nós, mas
uma projeção idealizada sua; tal projeção é cintilante – vai e volta e pode ir
e nunca mais voltar, dependerá de como as coisas nesse plano do real físico se
desenvolvam.
Não é
gratuito que Milena Agus, tenha escolhido justamente a mulher para redesenhar
essa tese; para elas se criou a maior sorte dos discursos, dos mais coerentes
aos mais cafonas e sórdidos, sobre a dimensão do amor. Logo, só por elas, é
possível romper com as falsas cintilações desse espectro que nos ronda. Da
mesma maneira, não é gratuito que do ponto de vista do homem, tudo sobre o
amor, não passe de elucubrações gratuitas num espírito atormentado, incapaz de
distinguir o feroz sentido das coisas.
Nicole Garcia
conduz uma releitura, ao que parece, muito segura do romance de Agus; na mesma
proporção que Cotillard reinventa um dos perfis mais caros na literatura francesa:
o da mulher eivada pela ordem dos discursos idealistas sobre a realização
amorosa, que remontam à boa literatura de um Balzac ou à de Flaubert.
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