Madame Bovary: erotismo e sensualidade

Por Nesfran Antonio González Suárez

"Nude on coastal rocks", Warren B Davis



Madame Bovary é considerado por uma unanimidade de vozes o romance mais refinado no âmbito literário. É um manual de indução, um curso intensivo do gênero escrito de meados do século XIX e cuja vigência não se vê ameaçada com transcorrer dos anos. Mario Vargas Llosa faz alusão em seu estudo A orgia perpétua a um ponto principal no qual coloca Flaubert; para o escritor peruano, o francês é o primeiro romancista moderno, seguindo a opinião de Ernst Robert Curtius no ensaio Reencontro com Balzac: “Balzac sente um ardente interesse pela vida e nos contagia com seu fogo; Flaubert, com sua náusea”.

É por causa de Madame Bovary que Gustave Flaubert (Ruan, 1821; Croisset, 1880) enfrenta em 1857 um processo judicial por ofender a moral e bons costumes; depois de sua absolvição o romance é publicado e obtém enorme êxito. A obra narra a experiência de Emma Rouault, uma jovem provinciana que, depois de se casar com Charles Bovary, um médico de família, se vê envolvida numa série de altos e baixos até cometer adultério em duas oportunidades e perder o patrimônio familiar ao assumir o custo de seus excessos mediante qualquer quantidade de pequenos empréstimos.

Depois de casados no povoado de Tostes, o casal Charles e Emma mudam-se para Yonville-l’Abbaye, onde nasce Berthe, a primeira e única filha. Fervorosa leitora de romances, costume que adquiriu à surdina no convento onde estudou, começa a experimentar desejos de mudança e recusa pela realidade que vive com o marido. De Yonville, Flaubert descreve com a precisão de um cirurgião os detalhes dos habitantes que formam parte da trama. Emma tenta levar uma vida comum e rural até a aparição de um transeunte, León Dupuis, com quem tem em primeira instância uma relação meramente platônica, findada com a partida deste para Paris. Depois, salva de qualquer tentação é chegado no povoado Rodolphe Boulanger, um atraente e rico jovem determinado em converter Emma em sua amante. É a partir da aparição de Rodolphe que Flaubert começa a colocar em cena de maneira mais que magistral, através de um fino e delicado erotismo que envolve gestos, indumentárias e a natureza como plano de fundo para permitir ao leitor recriar por conta própria as ações que as circunstâncias sugerem:

“O pano de seu vestido se prendia ao veludo do casaco. Ela inclinou o pescoço branco para trás, que se inchava com um suspiro; e, desfalecendo, toda em prantos, com um longo estremecimento e escondendo o rosto, ela se abandonou.

As sombras da noite baixaram; o sol horizontal, passando por entre os galhos, ofuscava-lhe os olhos. Aqui e acolá, ao redor dela, nas folhas ou no chão, machas luminosas tremiam, como colibris, voando, tivessem espalhado as suas plumas.”

Rodolphe muda em suas atitudes à medida que Emma se envolve na sua vida. Não consentia que ela tomasse as rédeas naquela relação pecaminosa embora por momentos tente manter uma postura que implica a entrega ao capricho por essa mulher: “Mas ela era tão bonita! Ele tinha possuído tão pouco de semelhante candura! Esse amor sem libertinagem era para ele algo novo, e que, retirando-o de seus hábitos fáceis, acariciava, ao mesmo tempo, o seu orgulho e a sua sensualidade.”

À medida que a relação avança, Emma demonstra sua rebeldia ante a hipocrisia e as formas como as coisas se passam no seu tempo: “Pelo simples efeito de seus hábitos amorosos, a sra. Bovary mudou de atitudes. Os seus olhares tornaram-se mais atrevidos, seus discursos mais livres; cometeu até a inconveniência de passear com Rodolphe om um cigarro na boca, como para desafiar toda a gente”.

Flaubert plasma algumas pinceladas aparentemente influenciadas pelo Marquês de Sade através do amante de Emma: “Rodolphe percebeu nesse amor outros prazeres a explorar. Julgou todo pudor incômodo. Tratou-a sem cerimônia. Fez dela algo maleável e corrompido.”

A relação com Rodolphe termina quando Emma decide fugir com ele levando Berthe. Uma viagem à Itália é o pretexto para a fuga, mas o medo do amante em ter sua liberdade comprometida o obriga a deixá-la à espera. Madame Bovary adoece durante meses e é Charles quem vela por sua recuperação, que inclui uma viagem a Rouen para desfrutarem de uma ópera e onde se produz o encontro casual com Léon Dupuis.

O evento se prolonga por um dia a mais e Charles decide regressar ao seu povoado deixando sua mulher na companhia de Léon. A oportunidade é aproveitada por ele para cortejar Emma e é aqui onde se produz a cena mais contundente e sublime do romance. Depois da confidência de seus sentimentos, decidem se encontrar no dia seguinte na igreja. Uma vez ali, Emma tenta fugir da pressão de León e num leve embate é levada a um cabriolé. O condutor recebe a ordem de percorrer a cidade enquanto o compartimento dos passageiros se encontra “mais fechado do que um túmulo e balançando como um navio”. Enquanto o leitor possivelmente assume o que se passa no interior daquele espaço, Flaubert constrói um mapa das ruas pelas quais atravessa o trole, as impressões das pessoas que veem a cena de idas e vindas da carruagem e o cansaço do cocheiro e dos cavalos numa harmônica e sutil descrição do entorno, para arrematar da seguinte maneira: “Depois, pelas seis horas, o cabriolé parou numa ruela do bairro Beauvoisine, e mulher desceu dele, caminhando com o véu abaixado, sem virar a cabeça”.

Sobre esta cena, Mario Vargas Llosa dedica as seguintes palavras em A orgia perpétua:

“O clímax erótico do romance é um hiato genial, um subterfúgio que consegue, justamente, potencializar ao máximo o material oculto ao leitor. Refiro-me ao interminável percurso pelas ruas de Rouen do fiacre em que Emma se entrega a Léon pela primeira vez. É notável que o episódio erótico mais imaginativo da literatura francesa não contenha uma única alusão ao corpo feminino, nem uma palavra de amor, e seja apenas uma enumeração de ruas e lugares, a descrição das idas e vindas de uma velha carruagem de aluguel.”

Uma alusão contemporânea e familiar podemos encontrar no filme Titanic, de James Cameron, quando os protagonistas se trancam num carro e o espectador só pode apreciar o do que se passa em seu interior apenas uma mão deslizando pelo vidro embaçado.

A relação com Léon se desenvolve em Rouen, distante de Yonville. Emma planeja suas viagens argumentando convites para aulas personalizadas de piano, situação que tranquiliza Charles por encontrar sua esposa de bom humor e recuperada da crise em que se viu envolvida. O excesso e a libertinagem chegam então ao seu ponto mais alto, a efusão em cada encontro furtivo coabita num voo com o poder de possuir o leitor em sua imaginação: “Quando ela se sentava no colo dele, sua perna, então muito curta, pendia no ar; e o delicado calçado, que não tinha calcanhares, prendia-se apenas pelos dedos ao seu pé descalço.”

O que no princípio foi para León uma explosão de luxúria e prazer se tornou em opressão com a persuasão e domínio de Emma sobre todos os seus atos. Dá a impressão de que o amante é ele e não ela. O escrivão começa a receber reprimendas de seu chefe e não podia dar um passo sem ter que prestar contas à sua amante no dia fixado do encontro:

“O que o encantava outrora espantava-o um pouco agora. Aliás, ele revoltava-se contra a absorção, cada dia maior, de sua personalidade. Tinha raiva de Emma por essa vitória permanente. Esforçava-se até para não mais gostar dela; depois, ao estalar de suas botinhas, ele se sentia covarde, como os ébrios à vista das bebidas fortes.”

A derrocada de Emma desencadeará o final da história; a relação com Léon se desgasta e se empenha em se livrar das cobranças que recai sobre sua casa e seus pertences. Pede ajuda até mesmo a Rodolphe, o qual nega-lhe e ante a iminência de um desastre sobrevém um final marcado pela tragédia arrastando no infortúnio seu marido e sua filha.

Flaubert, para elabora sua Madame Bovary deve ter se inspirado na tragédia de Delphine Delamare, com elementos de seus amantes Louise Pradier e Louise Colet, mas ante a pergunta nascida do tribunal e recorrente depois do reconhecimento da história sempre preferiu responder com o taxativo: “Madame Bovary sou eu”. É o romance uma exaltação à arte pela arte através de situações corriqueiras que deixam a condição de meramente comuns para se converterem num legado à posteridade. Em sua elaboração empregou quatro anos e meio, quase ininterruptos – cada dia com dez horas de trabalho. Maria Vargas Llosa, fiel admirador de Flaubert e sua obra, chega a dizer que: “Fazia anos que nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu mundo.”

* Este texto é uma tradução de  Madame Bovary: erotismo y sensualidad”, publicado na revista Letralia.

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