O livro predestinado: os Ensaios de Michel de Montaigne

Por Pablo Sol Mora




 
A leitura tem seus fados, que obram misteriosa e, por vezes, providencialmente. Algum deles decidiu que eu leria, no mesmo ano, o Livro do desassossego e os Ensaios de Montaigne, a obra da desolação e a obra da ventura. Com os Ensaios chegamos ao coração destas memórias porque se trata, talvez, da leitura decisiva da minha vida. De certa forma, creio que todas as minhas leituras anteriores foram apenas uma série de passos prévios para chegar a esta, e se de todos os livros que li tivesse que escolher apenas um, provavelmente seria este.
 
É um fenômeno raro e que não necessariamente ocorre com todos os leitores, incluindo aqueles que muito leram: encontrar o livro, aquele que nos define e marca por inteiro. É um momento único, privilegiado, aquele em que o leitor encontra seu livro e o livro, seu leitor. Sempre gostei da ideia, de que fala Piglia em Alvo noturno, do livro predestinado, aquele que parece feito para nós, pessoalmente, e que pode estar nos aguardando no fundo de um longo corredor de séculos e volumes.
 
As circunstâncias em que li os Ensaios também foram excepcionais. Foi a segunda grande leitura daquele ano de “retiro” e o contraste não poderia ter sido maior.1 Eu, naturalmente, havia lido os Ensaios antes (não todos; na verdade, apenas os mais famosos). Era claro para mim que se tratava de um clássico, eu o tinha vagamente admirado e apenas isso. Ou seja, li por cima, superficialmente; ou seja, na realidade não li nada. Quantos livros, e não poucos clássicos, lemos deste modo! Cremos conhecer Dante, Cervantes, Shakespeare, Montaigne. Chegamos a lê-los de verdade? Será que os compreendemos e fazemos deles parte de nosso ser? Na maioria das vezes, temo, apenas descobrimos do que tratam e pronto.
 
Montaigne, ademais, é um autor para certa idade. Não faz muito sentido lê-lo, digamos, antes dos trinta (eu tinha 33 quando fiz essa leitura, ou seja, cinco a menos do que ele quando começou a escrever sua obra). Não há problema em lê-lo antes, claro, para ir conhecendo-o e saber que existe, mas sobretudo para depois, passado algum tempo e tendo acumulado certa experiência de vida e leitura, lê-lo de fato. Este, por certo, é um conceito-chave no mundo de Montaigne: experiência. Não à toa o último dos Ensaios, epítome de toda a obra, intitula-se precisamente assim. Os Ensaios expõem em sua totalidade a experiência vital de um homem e demandam ao leitor, para que se possa estabelecer um diálogo frutífero, que ponha a sua sobre a mesa.
 
O livro em que li os Ensaios foi a edição de Obras completas de La Pléiade, a preparada por Albert Thibaudet e Maurice Rat (Gallimard, Paris, 1980), que havia comprado em Paris anos antes com algum bouquiniste. Estava em perfeito estado, com sua capa de plástico e suspeito que quase intocada. No ano que passei na França comprei os Pléiade que pude, todos de segunda mão (Rabelais, Descartes, Pascal, Stendhal...). Deveria fazer uma pausa para elogiar esta coleção (ainda que isso já tenha sido feito muitas vezes) que, em sua apresentação material (o papel bíblia, a capa de couro, a tipografia etc.), e no escrúpulo com que é feita, cifra de algum modo toda a civilização do livro. Ter nas mãos um volume da Pléiade e folheá-lo comunica de imediato, de maneira física, o valor dessa civilização que não faz muito tempo presumia-se ter sido rápida e completamente substituída pelas telas. Memórias de leitura como estas — nas quais são indispensáveis os livros concretos, materiais, com suas formas, cores e cheiros — seriam impensáveis nessa duvidosa utopia, que por sorte não viverei. Talvez, sem ter muita consciência disso, escrevo um documento histórico, uma relíquia; talvez um leitor de um futuro não tão distante, se chegar a ler isso, ficaria assombrado: “Veja como eles gostavam dos livros!”
 
Além da edição de La Pléiade, tinha à mão a clássica tradução de Constantino Román y Salamero em três volumes da Iberia, na coleção Obras Maestras, com seu simpático logotipo de um rato mordiscando um livro. Assim, com essas duas edições, dicionários e lápis na mão, passei alguns meses na companhia quase exclusiva de Montaigne. Quase não fazia outra coisa e mal saía de casa. Lia, lentamente, maravilhado quase a cada página. Experimentei o que muitos leitores de Montaigne, do século XVI até hoje, experimentaram: o assombro e a gratidão — o grato assombro — de me descobrir nestas páginas escritas por um homem há mais de quatrocentos anos. Montaigne, já se sabe, pôs-se a buscar a si mesmo e nos encontrou a todos. Como foi possível? Para responder essa pergunta, para ponderar minha admiração e compartilhá-la compus um pequeno livro que espero publicar em breve, de modo que não tentarei resumir aqui o que lá está dito, mas desejo sim apontar algumas razões pelas quais o encontro com Montaigne foi decisivo para mim.
 
A palavra encontro é justa porque, ao ler os Ensaios, mas do que simplesmente ler um livro, tem-se a impressão de se estar diante de uma pessoa, de carne e osso, e de falar com ela. É uma impressão partilhada por muitos leitores de Montaigne ao longo da história e que Stefan Zweig soube expressar muito bem: “Não tenho comigo um livro, uma literatura, uma filosofia, mas sim um homem do qual sou irmão, um homem que me aconselha, que me consola e faz-se meu amigo, um homem a quem compreendo e que me compreende. Se pego os Ensaios, o papel impresso desaparece na escuridão da sala. Alguém respira, alguém vive comigo, um estranho adentrou minha casa, e já não é um estranho, mas alguém que sinto como amigo.”
 
Poucos livros transmitem com tanta força a personalidade e a humanidade de seu autor como os Ensaios. Aqui, como disse o próprio Montaigne, não se pode separar a obra de seu fazedor e “quem toca em uma toca no outro” (II, III).2
 
Com os Ensaios, Montaigne empreendeu um projeto que, embora seja possível encontrar precursores (Sêneca, santo Agostinho, Petrarca), foi algo bastante inédito. Como afirma no devidamente famoso prólogo “Ao leitor”: “é a mim mesmo que pinto”. Montaigne levou a cabo uma das mais radicais e completas execuções do célebre oráculo de Delfos e da aspiração socrática: conhece a ti mesmo. Para fazê-lo, recorreu a uma forma que não existia, que teve de inventar justamente com esse fim, o ensaio. É um dos maiores méritos de Montaigne: ter criado seu próprio gênero. Não existia o ensaio, propriamente falando, antes que este cavaleiro francês o criasse em seus domínios no Périgord. A nenhum outro gênero se pode atribuir uma paternidade tão clara e inequívoca como a este. Não se pode falar do inventor do poema, do romance ou do drama; do ensaio, sim, Michel de Montaigne. Por outro lado, e diferentemente da maioria dos autores, não se dispersou nem se despendeu em diversas obras mais ou menos circunstanciais e apostou tudo em uma só, única e essencial. Uma vida, um homem, um livro.
 
O propósito é o autoconhecimento e o retrato de si mesmo. Para isso, Montaigne ensaiará sobre todas as questões possíveis (a amizade, os canibais, a presunção, uns versos de Virgílio, a vaidade etc.). No fundo, o tema é sempre ele, o homem Montaigne, que se examina escrupulosamente até o último dos seus recantos. Logo surge o óbvio, que poderia ter sido fonte de desespero, mas que o ensaísta aceita como parte inerente da condição humana: não há fixidez, não há estabilidade no homem, estamos em perpétua mudança e movimento, e o eu de ontem é outro. Não importa; pintará então a passagem. Somente por meio do ensaio, esse gênero libérrimo e sem constrições, ágil e leve, poderá lográ-lo.
 
Nos capítulos anteriores, o leitor terá notado minha predileção por essa minoria de autores — autênticos happy few — que buscaram e pregaram a alegria. Montaigne encabeça a todos e é esta a principal razão de meu amor por ele. Sua obra bem poderia chamar-se os Ensaios ou Da felicidade, porque é em torno dela que gira sua principal lição. Começa, como faria séculos mais tarde seu discípulo Alain, por rechaçar os encantos da tristeza e da melancolia, humor que, por certo, não ignorava. O Senhor da Montanha é, antes de tudo, um grande hedonista (“Digam o que quiserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia”, XX3, I), extremamente sensível aos prazeres sensuais e intelectuais. Ele os procurará sempre, sem qualquer vergonha, enquanto abomina todo tipo de ascetismo. Como seu irmão de espírito, Stendhal, detesta esses seres profissionalmente tristes, queixosos, desanimados. O sábio dos Ensaios é um sábio alegre: “O mais visível sinal de sabedoria é uma alegria constante. O sábio é sempre sereno.”4
 
Como pouquíssimos livros, os Ensaios são uma arte de viver, um manual de humanidade (na minha opinião, o mais completo e gentil já escrito). Eles ensinam o ofício mais importante de todos: “Nada é tão legítimo e belo como desempenhar o papel de homem em todos os seus aspectos. Não há ciência mais árdua do que a de saber viver naturalmente, e a mais terrível das moléstias é o desprezo pela vida” (XIII, III).51019
 
Notas da tradução
 
1 Sobre isso, ver “Sobrevivendo ao Livro do desassossego de Fernando Pessoa”, publicado aqui no Letras.
 
2 Trecho do ensaio “Do arrependimento”.
 
3 No original, o autor indica que se trata do ensaio XIX do Livro I. Na edição consultada (Ensaios, tradução de Sérgio Milliet, Editora 34, 2016, p. 120), o ensaio “De como filosofar é aprender a morrer”, origem do excerto, é o vigésimo.
 
4 Mais uma vez, a indicação do ensaio no original difere da nossa. O ensaio “Da educação das crianças”, origem do excerto, é o de número XXVI no Livro I (Ensaios, tradução de Sérgio Milliet, Editora 34, 2016, p. 196)
 
5 Excerto do último ensaio do Livro III, “Da experiência” (Ensaios, tradução de Sérgio Milliet, Editora 34, 2016, p. 1019).


* Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “El libro destinado: Ensayos de Michel de Montaigne”, publicado aqui em Letras Libres em 13 jul. 2022
 

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