A contística inicial de Michel Proust

Por Gabriella Kelmer


Marcel Proust. Foto: Paul Boyer


 
A editora L&PM publicou em formato de bolso, em 2018, a coletânea O fim do ciúme e outros contos, de Michel Proust, a partir de uma seleção de narrativas curtas atinentes ao primeiro livro do autor, Les plaisirs et les jours, de 1896. A obra na íntegra, traduzida como O prazer e os dias, foi lançada pela Rio Gráfica no Brasil em 1986, sem que tenha havido desde então uma reedição dos textos, correspondentes à fase mais tenra da escrita do autor.
 
Os contos que constituem a versão brasileira mais recente são quatro: “Violante ou a mundanidade”, “A confissão de uma jovem”, “Um jantar na cidade” e “O fim do ciúme”, que cede título à coletânea. Cada um deles permite entrever, ainda que embrionariamente, algumas das preocupações da grande obra de Proust, Em busca do tempo perdido, a exemplo do ciúme, da vida mundana experimentada nos salões parisienses, da primazia das relações entre mãe e filhos, da homossexualidade. Sob a sombra lançada pela fundamental produção romanesca do francês, os contos são o produto de uma fase em que não estão maduros ainda o descritivismo e o memorialismo que se tornariam marcas de um fazer literário a registrar a superação do realismo formal; são, entretanto, como narrativas curtas, produções bem resolvidas, de um autor que já vislumbrava o tom e os temas que lhe interessariam por toda a sua trajetória literária.
 
Um desses temas é, transversalmente às quatro produções, o desvelar subjetivo dos seus protagonistas, que aliás têm em comum uma inquietação existencial devida ao mesmo contexto: uma Paris vivificada em devassidão e perversão, em reificação e deslumbramento. Todos eles se integram a essa sociedade, que lacera o espírito e os afasta de si mesmos, permanecendo enredados na atração irresistível desse meio cosmopolita, intelectual e diversificado, na maioria das vezes à revelia do próprio bem-estar.
 
“A primeira necessidade de confidência nascia, para ela, das primeiras decepções de sua sensualidade, tão naturalmente quanto em geral nasce das primeiras satisfações do amor. Ela ainda não conhecia o amor. Pouco tempo depois, sofreu por causa dele, única maneira de se aprender a conhecê-lo” (Proust, 2018, p. 15).
 
É assim que nos dá a conhecer a primeira protagonista, Violante, viscondessa da Estíria. Órfã aos quinze anos, vê-se em companhia de sua evidente ausência de vontade, característica que já não pode mais ser lapidado pelos pais ausentes. Sua bondade e pureza, bem como a alegria e a tristeza infinitas que vivenciava no ambiente campestre e nas relações genuínas que nele mantinha, são logo perdidas no fluxo de amores e mudanças a que se submete; no meio urbano, para onde se transfere, sua vaidade, alimentada pelas relações mundanas que mantém, impedem-na de retornar à origem, ainda que saiba, com toda certeza, não ser feliz.
 
O segundo conto introduz uma segunda jovem, cujo nome ausente dá talvez a medida do seu embaraço, a enfrentar as dores lancinantes de sua inábil tentativa de suicídio e, talvez ainda mais gravemente, a culpa profunda que experiencia perante as práticas sexuais mantidas sem que o soubesse sua mãe. É essa relação, entre mãe e filha, o que conduz a narrativa; o amor sentido pela figura materna leva a jovem ao estado de absoluto desespero do presente, de onde elabora sua história. Como Violante, essa protagonista, única que se diz em primeira pessoa, perde ao longo da juventude algo de sua essência, vendo-se maculada pela intervenção de rapazes que a iniciam, com seu consentimento, na vida sexual. Ora reabilitada pelo desejo materno de vê-la casada e pela reaproximação com a igreja, a personagem logo deixa-se reconduzir às más escolhas pelo vinho e pelas sórdidas companhias, gerando consequências terríveis para si mesma e para a mãe.
 
Em “Um jantar na cidade”, o autor situa Honoré — nome curiosamente citado em três dos quatro contos — como protagonista, sendo ele um dos convidados do jantar do senhor e da senhora Fremer. O evento reúne uma porção de singularíssimas personalidades a quem deviam os anfitriões o reconhecimento social então despendido; singulares, em seus lugares na sociedade e em suas inclinações pessoais, exceto por um fator que os une. É o narrador quem revela, sem que a personagem o reconheça, o esnobismo como traço comum de todos, inclusive do protagonista. Apesar das diferenciações de interesses, do fato de pertencerem ou não à nobreza, da sensibilidade mais premente de um ou de outro, os participantes do jantar compartilham o senso de autoimportância, reconhecem a necessidade do desfile de suas posses e personalidades e admitem, em termos de pouca afetação, a impossibilidade de uma outra sociedade, que não os veja tão ricos, ou que não gere tantos pobres. Dentro do contexto dessas similitudes, já sintetizadas pelo substantivo eleito pelo próprio narrador, não deixam entretanto de existir as particularidades, os genuínos arroubos de emoção; encerra-se o conto com a caminhada de Honoré, após o jantar, e sua felicidade inefável, sua reflexão sobre o outro, que dá ao conto seu momento mais alto.





A última narrativa, “O fim do ciúme”, a mais extensa da coletânea, diz respeito a um jovem, de nome Honoré (o mesmo, talvez?), que se vê inteiramente vitimado, em certa altura de seu envolvimento com Françoise, viúva por quem sente um amor intenso e consciente da própria instabilidade, por um ciúme irascível, enlouquecedor. Mais importante do que compreender a origem do sentimento, entretanto, causa para um grande sofrimento emocional e para uma brusca mudança de comportamento do protagonista, é saber em que momento se visualiza o encerramento já proposto desde o título do conto. As condições que levam ao fim do ciúme, fraqueza humana atentatória da razão e do juízo, vinculam-se a circunstâncias extenuantes que levam à transcendência o sujeito, só então, a ponto de deixar esta vida, capaz de desvincular-se da mundanidade de suas emoções.
 
“Como toda essa água fresca das lembranças pôde brotar e novo e fluir por minha alma impura sem se contaminar? Que virtude possui o matinal perfume de lilás para atravessar tantos vapores fétidos sem se misturar a eles e sem enfraquecer? Ah! É tanto dentro de mim quanto bem longe de mim, para fora de mim, que minha alma de catorze anos ainda desperta. Bem sei que não é mais minha alma e que não depende de mim que volte a ser” (Proust, 2018, p. 36).
 
Tendo delineado resumidamente os enredos que compõem a coletânea, alguns apontamentos gerais. Todos os contos, conforme estruturados por Proust, constituem-se de subdivisões internas, na forma de capítulos, ora a apontarem para o caráter memorialístico da narrativa, como é o caso de “A confissão de uma jovem”, ora a flagrarem a sucessão de eventos pela qual em geral se reconstitui os momentos fundamentais para efetiva compreensão das personagens e de suas trajetórias (apenas em “Um jantar na cidade” essas divisões correspondem a momentos imediatamente posteriores, sendo vedada da leitura qualquer informação pregressa sobre a personagem central). Esse procedimento, ao estabelecer a incontornabilidade da vida pregressa — mesmo que esse se desempenhe como momentâneo presente — para a compreensão do que a ela se segue, produz uma forma de exercer o conto bastante curiosa, posto que já irmanada do romance, gênero para o qual a passagem do tempo, bem como a interioridade do ser ficcional, suas manifestadas afeições e suas transformações subjetivas, espraia-se mais do que em geral acontece nas narrativas curtas.
 
Em termos estilísticos e linguísticos, os contos elaboram algumas imagens comuns, como o jorrar emocional, o remédio da alma, o murchar da flor; fazem-no, entretanto, em meio a autêntico sofrimento existencial, exposto pelo aprofundamento na interioridade das personagens e pela novidade de outras construções (“o espetáculo suntuoso e desolado de uma vida criada para o infinito e aos poucos restrita a quase nada”, “mil diques do egoísmo, da afetação e da ambição”, “braceletes impenetráveis e fechados no pulso de uma apaixonada”).
 
De outro modo, pode-se dizer que, em especial nos contos concernentes às personagens femininas confrontadas com a iniciação sexual, desvio moral definitivo à época, existe uma dicotomia constitutiva entre o bem e o mal, entre a espiritualidade e o prazer, que poderia levar as narrativas a lugares comuns da literatura; salvaguarda os textos o fato de que as personagens desempenham o erotismo, o amor e a insatisfação como seres complexos, volúveis, angustiados pelas interpelações de um mundo já pouco coeso. Nesse sentido, sendo “Violante ou a mundanidade” a narrativa mais ingênua dentre as quatro, ao produzir o conhecido enredo da mulher devassada pela luxúria e pela vaidade, tão comum ao realismo, ainda é premente em sua leitura a necessidade nunca priorizada de Violante de estabelecer um vínculo mais profundo consigo mesma e de reestabelecer-se em sua própria intimidade, sendo sua diferenciação — a que aspiram aqueles que não se veem inteiramente engolidos pelo vazio da vida moderna — a manutenção dessa necessidade, embotada, decerto, mas ainda vivente. Equivalem a solidão e o campo, no contexto dessa escrita, à reabilitação da alma, jamais realizada.
 
Em “A confissão de uma jovem”, a primeira pessoa, que afinal tornou o autor francês ilustre, demonstra uma melhor resolução para o caráter subjetivo da narrativa, que acompanha a reconstituição dos fatos que levaram a jovem à tragicidade de sua história. A descrição do vínculo com a mãe evoca algumas passagens de O caminho de Swann, de Em busca do tempo perdido (o mesmo acontece no último conto, quando é descrito o momento do beijo noturno dado à criança antes de dormir). Estabelece-se, assim, a centralidade da figura materna na existência, com a recomposição dos afetos e da sensação constante de falta vivenciadas na infância. Em outra chave de leitura, um silêncio sobre o nível de envolvimento sexual da personagem central também gere a narrativa; havendo a discussão de um desvio comportamental, ele é eufemizado ou omitido, em uma abordagem que sugere, simultânea e estruturalmente, a culpa e a vergonha geradas pelo caminho descendente vivenciada pelo ser ficcional. É nesse conto, abertamente memorialístico, por ser construído justamente pela voz que lembra, aquele em que o passado se interpõe como matéria; falta aqui, em relação à produção romanesca, a perspectiva fulminante da memória involuntária, mas vive a necessidade de viver plenamente, desde o presente, o que foi perdido, havendo descrições vívidas de fatos passados, em especial aqueles que implicam o investimento emocional da personagem.
 
“Violante ou a mundanidade”, “Um jantar na cidade” e “O fim do ciúme” trazem, de maneira diversa, uma sequência temporal presentificada, embora varie a passagem do tempo. Nessas duas últimas narrativas, há uma mudança mais veloz dos estados de espírito. Sobre as personagens que habitam o jantar, notabiliza-se, além do já mencionado esnobismo, traços apaziguadores, na forma de uma certa humanidade enternecida, que dão mesmo à acompanhante mais desagradável algum brilho; essa complexidade, talvez devedora do olhar encantado que Honoré lança ao mundo após sair da reunião, é retomada no momento de solidão da personagem, que conclui ser impossível elaborar sua felicidade — nascida do vinho e da congregação — nos termos devidos, conquanto isso não importe tanto perante a possibilidade de ser e mostrar-se. Em “O fim do ciúme”, que ocupa um tempo mais extenso do convívio entre Honoré e sua amada, exibe-se, desde a violência da palavra, a degradação emocional vivida pelo protagonista, confrontado por um ciúme violento. Para além da emoção, na narrativa, resta apenas a possibilidade de evasão da vida material, sendo a pacificação do sentimento improvável senão pela completa transformação da perspectiva do sujeito, o que retoma as temáticas discutidas nos dois primeiros contos, cujas personagens não enxergaram a possibilidade de tão radical deslocamento.
 
“Acima de si, via elevar-se tudo o que por tanto tempo pesara sobre ele a sufocá-lo; julgou, primeiro, que se tratasse da imagem de Gouvres, depois apenas de suas suspeitas, de seus desejos, dessa espera de outros tempos, desde a manhã gritando pelo momento em que veria Françoise, a seguir, da ideia de Françoise. A cada minuto assumia outra forma, como uma nuvem, crescia, crescia sem parar, e agora ele não explicava mais como aquela coisa que compreendia ser imensa como o mundo pudera estar sobre ele, sobre seu pequeno corpo de homem fraco, sobre seu pobre coração de homem sem energia e como ele não fora esmagado. E também compreendeu que havia sido esmagado e que fora uma vida de esmagado a que levara. E essa coisa imensa que havia pesado sobre seu peito com toda a força do mundo compreendeu que era seu amor” (Proust, 2018, p. 104).
 
Conquanto não sejam o ponto alto da produção proustiana, os contos permanecem mesmo perante a comparação inevitável com a fase madura do autor, constituindo, ademais, composições esteticamente interessantes, de interioridades e resoluções pouco óbvias, ainda que a direção da narrativa se mostre evidente. É a obra um retorno que dará a tônica e os contornos de Em busca do tempo perdido, aos leitores experientes, e proporá um início digno da trajetória literária de Proust àqueles que nunca o leram.


______
O fim do ciúme e outros contos
Marcel Proust
Julia da Rosa Simões (Trad.)
L&PM Editores, 2018
112 p.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #636

O abismo de São Sebastião, de Mark Haber

Dez poemas e fragmentos de Safo

11 Livros que são quase pornografia

Boletim Letras 360º #625

A criação do mundo segundo os maias