A 18, encontro com José Saramago (II)

Iniciativa posta ao ar desde o último dia 18; todo 18 de cada mês durante noves meses leitores saramaguianos do mundo inteiro reúnem-se para ler um fragmento de sua obra e brindá-lo com uma taça de vinho. Este blog segue a iniciativa. O fragmento que leio hoje é do Levantado do chão, aquele que fala do dia em que todos - os vivos e os mortos - largam seu estágio de curvatez e seguem em liberdade.

Aproveito ainda para lembrar de duas outras homenagens que preparo ao escritor: uma é o minicurso Diagnósticos do presente em José Saramago, Chico Buarque e Jorge Reis-Sá, que irei ministrar por ocasião do I Colóquio Nacional de Estudos Linguísticos e Literários que irá ocorrer entre os dias 06 e 08 de outubro na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia; e outra é a edição especial do caderno-revista 7faces que preparo em homenagem ao escritor. Outras novidades estão a caminho e breve serão divulgadas por este espaço.


Este sol é de justiça. Queima e inflama a grande secura dos restolhos, este amarelo de osso lavado ou curtimenta de seara velha e requeimada de calores excessivos e águas destemperadas. De todos os lugares de trabalho confluem as máquinas, o grande avanço dos blindados, ali esta linguagem guerreira, quem a pudesse esquece, são tractores que avançam, vão devagar, é preciso ligar com os que vêm dos outros sítios, estes já chegaram, grita-se de um lado para outro, e a coluna engrossou, torna-se ainda mais forte lá adiante, vão carregados e atrelados, já há quem caminhe a pé, são os mais novos, para eles é uma festa, e então chegam a herdade das Mantas, andam aqui cento e cinquenta homens a tirar cortiça, juntam-se todos com todos, e em cada herdade que ocuparem ficará um grupo de responsáveis, a coluna já leva mais de quinhentos homens e mulheres, seiscentos, não tarda que sejam mil, é uma romaria, uma peregrinação que refaz as vias do martírio, os passos desta cruz.

Depois das Mantas vão ao Vale da Canseira, às Relvas, ao Monte da Areia, à Fonte Pouca, à Serrlha, à Pedra Grande, em todos os montes e herdades são tomadas as chaves e escritos os inventários, somos trabalhadores, não viemos roubar, afinal nem há aqui ninguém para afirmar o contrário, porque de todos estes lugares percorridos e ocupados, montes, salas, adegas, estábulos, cavalariças, palheiros, malhadas, cantos, cantinhos e escaninhos, pocilgas e capoeiras, cisternas e tanques de rega, nem falando nem cantando, nem calando nem chorando, estão Norbertos e Gilbertos ausentes, para onde foram, sabe-se lá. A guarda sai do posto, os anjos varrem o céu, é de revolução, quantos são.

Vai o milhando passando e contando, um milheiro, sem falar nos invisíveis, que é sina a cegueira dos homens vivos não darem conta certa de quantos fizeram o feito, mil vivos e cem mil mortos, ou dois milhões de suspiros que se ergueram do chão, qualquer número servirá, e todos serão pequenos se de longe somarmos, pendurados dos taipais vãos os motos, olham para dentro à procura de quem conheçam, dos mais chegados de corpo e coração, e se não encontram quem buscam juntam-se aos que vêm a pé, meu irmão, minha mãe, minha mulher e meu homem, por isso é tão natural reconhecermos Sara da Conceição, aquela que ali vai, com uma garrafa de vinho e um trapo e, Domingos Mau-Tempo, com o vinco da sua corda no pescoço, e agora passa Joaquim Carranca que morreu sentado à porta de casa, e Tomás Espada de mãos dadas enfim com sua mulher Flor Martinha, tanto tardaste, como é que estes vivos não dão por nada, cuidam que estão sozinhos, que andam no seu trabalho de gente viva, vêm muitas vezes, ora uns, ora outros, mas há dias, é certo que raros, em que saem todos, e hoje quem é que seria capaz de os segurar nas suas covas conformados quando os tractores atroam o latifúndio e as palavras não se calam, Mantas e Pedra Grande, Vale da Canseira, Monte de Areia, Fonte Pouca, muita fome, Serralha, não há quem valha, por sobre colina e vale, e aqui neste virar do caminho está João Mau-Tempo a sorrir, estará à espera de alguém, ou não disso, levamos para nossa morte todos os males e também os últimos, mas foi engano nosso pensar assim, voltam a João Mau-Tempo as duas pernas de rapaz, e agora salta, é um bailarino a voar, e vai sentar-se ao lado duma velha surda muito velha, Faustina minha mulher que comigo comeste pão com chouriço numa noite de Inverno e ficaste com a saia molhada, tantas saudades.

Põe João Mau-Tempo o seu braço de invisível fumo por cima do ombro de Faustina, que não ouve nada nem sente, mas começa a cantar, hesitante, uma moda de baile antigo, é a sua parte no coro, lembra-se do tempo em que dançava com seu marido João, falecido há três anos, em descanso esteja, é este o errado voto de Faustina, como há-de ela saber. E olhando nós de mais longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver Augusto Pintéu, o que morreu com as mulas na noite do temporal, e atrás dele, quase a agarrá-lo, sua mulher Cipriana, e também o guarda José Calmedo, vindo doutras terras e vestido à paisana, e outros que não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas. Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.

[José Saramago, Levantado do chão, p. 364-366]


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