Somos nada mais do que violência


Por Rafael Kafka



Os defensores do Estado policial não gostam muito de discutir com profundidade o tema da violência urbana, mal social terrível que aflige a existência do povo brasileiro de diversas maneiras. Para essas pessoas, a repressão e somente ela é capaz de resolver todos os problemas que levam ao cometimento em massa de crimes nas mais diversas paisagens do país. Isso em níveis macro ou micro. Há uma semana na escola onde dou aulas um professor foi atacado a golpes de faca por um aluno enquanto ministrava aula de língua portuguesa. Desde então, alguns professores, eu incluído, tentamos realizar ações de conscientização da necessidade de se discutir políticas públicas efetivas de combate à violência por meio de uma educação valorizada e humana, bem como com a presença de profissionais da saúde emocional e mental dentro dos ambientes escolares.

Nossos discursos e práticas tiveram de enfrentar a presença de membros do poder executivo local que usavam enunciados que reduziam a violência a uma mera questão de disciplina, responsabilizando as famílias por um cuidado educacional que, segundo a constituição brasileira, é compartilhado tanto pela estrutura familiar quanto por estados, municípios e União. Nas falas dos defensores da disciplina, com um viés claramente ligado ao do atual presidente da república, pequenos cuidados com o comportamento das crianças podem evitar que no futuro elas cometam atos mais sérios e perigosos. Se não há aqui mais um discurso essencialista a dizer que pessoas nascem prestando ou não, ainda há uma tentativa de eximir o Estado de seu papel cuidador, deixando aos cidadãos a liberdade de agir e progredir.

Tive de enfrentar esse discurso com uma fala de pouco menos de seis minutos enquanto as imagens vistas por mim na leitura do livro de Caco Barcellos, Abusado, não saíam de minha mente. Mesmo não usando uma dimensão multiplanar como a de Cidade de Deus, de Paulo Lins, o romance-reportagem de Paulo Lins é um soco no estômago que afetou por demais minha visão de mundo, fazendo-me encarar com um triste e atroz realismo a dimensão da violência presente ao meu redor.

Abusado foca na história de Juliano VP, jovem que se tornou o homem forte do Comando Vermelho na Santa Marta, imensa favela carioca, no final do século passado. A narrativa de Barcellos é feita a partir de depoimentos de moradores, dos homens e de VP e dele mesmo para criar uma espécie de genealogia do tráfico de drogas dentro de uma comunidade carente. O que fica muito patente na leitura do livro é a escolha muitas vezes por um caminho rentável diante da exploração sofrida pelos próprios aviões do tráfico ou por familiares, por mais que esse caminho rentável se veja recluso ao hermetismo da favela.

Santa Marta é um local que como tantos outros bolsões de miséria do país surgiu da concentração compulsória de pessoas pobres em áreas precárias devido a uma política de higienização social muito presente ainda nos grandes centros urbanos brasileiros. Iniciada após a escravidão, quando milhares de pessoas foram deixadas a viver sem suporte algum após serem libertas sem nenhum tipo de política de inclusão, tal política condenou gerações inteiras a uma vida marcada pela pobreza e que viu no crime formas de manter uma existência com algum tipo de dignidade.

Para os defensores do Estado policial isso tudo é balela e as estatísticas e dados históricos são sempre negados por um exemplo de perseverança conhecido deles como prova de que a pobreza por si só não reduz ninguém aos atos bárbaros do mundo do crime. Por mais que ainda defenda a ideia de sermos condenados a ser livres, hoje estou mais atento às variáveis sociais que levam os sujeitos a terem um campo maior ou menor para exercer a sua liberdade de ação. Os seguidores da doutrina liberal adoram se prender à noção de que basta exercer a liberdade para o sujeito vencer as suas limitações e há quem goste de usar Sartre para defender com base filosófica mais sustentável esse tipo de pensamento – ignorando que Marx depois diria estar o existencialismo dentro do marxismo. Mas por mais que defendamos a ideia de que o meio não produz o sujeito, o meio o pré-determina, dita uma situação, e o sujeito é livre dentro dessa situação.

Assim, um sujeito residente em uma favela pode muito bem escolher o trabalho honesto apesar de todas as dificuldades impostas pela sociedade capitalista na qual vivemos. Ainda assim, variáveis como poder político, poder de compra e segurança também devem ser levadas em conta diante do contexto no qual ele pode ir para o mundo do crime. Morar em uma favela não significa servir à lógica do mundo do crime, não é isso que o livro de Barcellos quer dizer. Todavia, a pobreza e a falta de dignidade é um elemento curiosa e insistentemente presente dentro dos ambientes mais violentos do país.

O que fica evidente no livro do Barcellos é uma tentativa de humanizar VP não para torná-lo herói e sim para mostrá-lo como uma liberdade exercida, como um sujeito que diante da situação existente diante de si fez uma escolha. Não sei se por ser um jornalista ou por questões estilísticas, a narrativa de Caco Barcellos assume um ar hermético quase sempre, sufocante. Não há aqui todo o poder de violência das cenas existentes em Cidade de Deus, provavelmente o grande clássico desse gênero de escrita no país. Ainda assim, a narrativa em diversos momentos assume um ar pesado, angustiante, mostrando a existência como algo frágil e vazio de sentido diante de um cenário de guerra constante.

A favela retratada aqui quase não possui amparo estatal e podemos dizer que os gestores sobem o morro apenas na forma de seus aparelhos repressores. Muitas vezes, estes próprios estão envolvidos em negócios escusos com o mundo dos crimes, como seria evidenciado por diversos fatos ligados às forças paramilitares que agem de forma privada. Desse modo, o longo livro não assume um ar maniqueísta, mas sim denúncia acerca de um descaso que intensifica uma violência que dizemos combater apenas usando mais recursos causadores de violência.

Quando um aluno entra com uma faca dentro de uma escola, logo pensamos em como evitar que esse aluno não volte a entrar ali com o objeto perfurante e cortante. Não pensamos na possibilidade de entender o que leva alguém a fazer algo do tipo e muitas das vezes estamos presos em uma lógica rasa na qual julgamos que alguém faz o que faz por ser perverso, por ser uma representação do mal. Muitos de nós ainda não entendemos que o monstro somos nós, que geramos a violência ou a executamos em contextos nos quais nossos gatilhos são ativados. Esses gatilhos podem ser provocados em diferentes intensidades de acordo com uma série de fatores combinados.

O filme Precisamos falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay, fala de um jovem que desde criança apresenta sintomas claros de psicopatia. Tais sintomas foram ignorados por conta de uma relação tumultuada com a mãe que cedeu à gravidez por um sentimento de submissão ao marido. Caso houvesse entre os pais uma relação de não violência, na qual o desejo da mãe fosse respeitado e ouvido plenamente, sem a necessidade de submissão, provavelmente Kevin seria criado em um lar mais saudável em que sua psicopatia seria precocemente tratada e evitaria problemas muito maiores. O título do filme é um convite à reflexão, dentro do ambiente americano, da quantidade de jovens que por lá costuma entrar em espaços públicos para atirar em consideráveis quantidades de pessoas inocentes. É muito mais fácil chamar essas pessoas de doidas, frágeis e o que mais vier à mente, mas entender o seu processo de sofrimento psíquico que descamba para o ambiente social é mais complicado.

No nosso país, além de entender esses pequenos sintomas precisamos mais do que nunca discutir o fosso econômico o qual nos marca. Pois é ele quem junto com diversas patologias individuais leva a uma imensa gama de práticas de violência. Os defensores do Estado policial e da disciplina rígida em escola, típica dos quarteis, ignoram essas variantes e preferem reduzir o debate ao conflito entre cidadão de bem e o mal.

Mas o mal, como diria Sartre, é uma invenção do cidadão de bem, um cidadão que fechado em sua consciência de si decide que tudo o que não encaixa nela como elemento harmônico é maléfico. Numa sociedade como a nossa que a cada instante cresce em sua diversidade, se expande em seus modos de ser, esse tipo de visão é extremamente problemático, pois torna o convívio social em um profundo embate entre aqueles que detêm poder e os que são a cada dia esmagados pelas forças de repressão e pelo descaso político.

Abusado é um livro incômodo não apenas pela violência contida nele. Como um bom romance, o livro não dá soluções para um problema sério e nos espanta com a complexidade do tema. O maior incômodo do romance-reportagem é nos fazer pensar que afundamos demais no poço da violência generalizada e sair dele exige um imenso poder de reflexão enquanto nós podemos ser as próximas vítimas de uma bala ou de um golpe certeiro. Pior: não há como fugir desse incômodo ainda mais quando vemos pessoas perto de nós sofrendo na pele os riscos da guerra em que vivemos. Há uma sensação de absurdo, de estar sem chão, que nos domina ao fechar o livro e ao olhar o mundo lá fora cheio das marcas de um descaso com as pessoas que agora se volta contra nós com toda a sua força em todas as formas possíveis de violência e de temor.



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