Autobiografia, de José Luís Peixoto

Por Pedro Fernandes


José Luís Peixoto. Foto: Reinaldo Rodrigues.


 
No discurso de recepção do Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago estabelece um jogo cuja prática exerceu ao longo dos romances que escreveu. Ao se reconhecer mestre e aprendiz de suas criaturas de tinta e papel — aliás, o título desse texto de dezembro de 1998 é “De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz” — o escritor viola propositalmente o lugar do leitor ao lhe atribuir um papel participativo na conformação da obra literária. Trata-se de uma dialética capaz de renovar ainda o estatuto do ficcional; não é o caso de um retorno ao infinito debate acerca dos limites entre o imaginado e o vivido, estirando-se para o primeiro polo dessa relação — até porque entre um e outro, a compreensão do escritor se apresenta indistinta. É, sim, a renovação de uma leitura sobre a existência enquanto aprendizagem constituída no limiar da fabulação e da ação.
 
O itinerário do protagonista deste romance de José Luís Peixoto é exatamente o da descoberta dessa aprendizagem; seu périplo muito tem da personagem principal de Manual de pintura e caligrafia, um dos primeiros romances de José Saramago. O pintor de retratos atravessa o dilema de uma crise das representações pela construção de outra forma de apreensão do mundo e das coisas, ao substituir, paulatinamente o ofício da pintura pelo da escrita. No caso da personagem de Autobiografia, seu dilema é estabelecer uma descontinuidade entre o fracasso do primeiro romance (um livro que narra seu próprio périplo existencial, isto é, o livro-título do romance de Peixoto) e a crise criativa que o impede na composição do seu segundo livro.
 
As semelhanças entre as duas situações, evidentemente, não são gratuitas: rompem-se do interior da ficção para a vida de seus escritores. O primeiro havia, como a personagem de José Luís Peixoto, atravessado com o Manual alguns outros fracassos: o do primeiro romance despercebido (A viúva publicado por interesse do editor como Terra do pecado), o de um livro perdido (Claraboia, só aparecido aos leitores depois da morte de Saramago) e o dilema de se reinventar — algo que leitor encontrará em toda primeira fase de constituição do escritor até o insight de Levantado do chão, a obra que inaugura o típico estilo que o faria um renovador da prosa ficcional de língua portuguesa. Este último encontra estreita relação com o autor de Galveias, quem, desde a publicação de Morreste-me, obra que não passou despercebida, esteve mergulhado num contínuo refazer-se livro a livro.
 
O que separa os dois escritores é, então, uma breve diferença cujo resultado não deixa de servir ao mesmo acaso. Entre o insucesso e o reconhecimento precoce prevalece a angústia sisífica de todo criador: encontrar, pela escrita, alternativa para sua posição não-confortável no mundo. Essa outra descoberta do escrevente em Autobiografia não se dará sozinha, mas com uma figura que, de alguma maneira, desempenha um papel de mentor, Saramago.
 
Essa relação desenvolvida ao acaso e cheia de atropelos por um discípulo meio atabalhoado com o professor — é assim que Saramago chega a ser descrito por Domingos numa ocasião — constitui outros elementos nesse universo. É possível ler este romance de José Luís Peixoto como uma progressiva aprendizagem do escritor, como uma libertação deste para suas influências. Dentro e fora da narrativa, sabe-se que o autor Prêmio Nobel de Literatura se constitui um modelo do qual toda uma geração sua contemporânea e posterior precisa aprender a conviver até induzi-lo ao necessário parricídio, quando, então, outra vez abre-se o lugar do gênio, repetindo o sentido proposto por Harold Bloom em A angústia da influência. Não é, entretanto, esse sentido último o que se simula nessa Autobiografia, literatura feita ainda de reconhecimento.
 
O romance de José Luís Peixoto se constrói por três linhas narrativas. Existe a da personagem José, constituída pelas aventuras de um homem comum, de existência anódina, romancista fracassado situado entre o adiamento contínuo do próximo livro, a oferta para a composição de uma biografia do escritor José Saramago e os vícios no jogo e no álcool. Esta primeira linha, apesar de narrada em terceira pessoa, constitui, como dissemos, o tom principal proposto pelo título do romance; ela pode ser lida como um pastiche de Manual de pintura e caligrafia, devido as estreitas relações entre as duas narrativas. A pista para essa afirmação é dada na própria narração: o Manual é o livro de convívio de José no seu intercurso. A essas duas linhas intercalam-se as anotações para a biografia do escritor e seu périplo na composição desse texto por encomenda.
 
Essas duas interferências problematizam o sentido do título oferecido por José Luís Peixoto, afinal, o que se designa como autobiografia se representa por textos de tom confessional e isso se verifica tanto temática como estruturalmente, e não é o caso específico desse romance, em que a autoficção se mostra mais pelas relações inevitáveis de identificação entre leitor e texto; seu mote principal parece ser de uma constatação mostrada pela narrativa: “Contar-me a mim próprio através do outro e contar o outro através de mim próprio”. Os diversos limites dessa afirmativa encontram-se na relação assumida entre biógrafo e biografado; quando José reconstrói os episódios da vida de Saramago, incluindo os do contato entre os dois, é a própria vida do biógrafo que oferece os elementos necessários à narrativa, ao ponto de o escrevente negar o conteúdo como biografia para conceituá-lo como ficção biográfica, o que, para os demais, é só romance.
 
É o leitor original, o próprio José, e depois, Saramago, que afinam o sentido principal do designativo desse romance. Agora, embora seja possível admitir com este último que todo leitor constrói uma projeção natural entre ele e o que lê, é preciso compreender que resulta impossível tratar isso por autobiografia; por mais que o vivido se repita integralmente de pessoa para pessoa sua experiência é sempre individual e irrepetível. Desse modo, é preferível admitir que o título do romance de José Luís Peixoto, provocado aliás pela personagem Saramago, tem sua justificativa exclusivamente pelo ponto de vista interno do texto. Para o leitor exterior, Autobiografia é uma narrativa sobre os meandros da criação ficcional oferecida a partir do seu interior.
 
Não é apenas o dilema e as ciladas impostas ao desfazimento da escrita o que encontramos em Autobiografia; materializa-se certa noção do espírito do gênio, pelo ímpeto marginal, múltiplo e atingindo pelas forças de certa miopia que comanda a ordem do mundo. É assim que José se vê em comparação a Saramago; ele o fracassado porque incapaz de obedecer a uma organização geral das coisas e ele o homem realizado porque seguiu à risca os princípios oferecidos pela mãe.



Situado entre o ano de publicação de Todos os nomes e o da notícia do Prêmio Nobel de Literatura, as narrativas que compõem o romance de José Luís Peixoto se prendem às referências do universo saramaguiano até esse instante; situações e nomes da obra de José Saramago aparecem retrabalhados e constituem a extensa colcha de retalhos que é esta Autobiografia. Assim, o protagonista escrevente recorda a personagem principal do livro de 1997 — José é, em parte, o Sr. José e seu périplo na composição de uma biografia de Saramago é o périplo dessa personagem saramaguiana às voltas para a composição de uma biografia sobre a mulher desconhecida e os dois são sujeitos em libertação da fase repetidor para a fase criador.
 
Se o biografado em Autobiografia é reconhecido, a mulher desconhecida, também o amor do Sr. José, tem nome e profissão: é a Lídia de O ano da morte de Ricardo Reis. Oriunda de Cabo Verde de onde foge depois de ser perseguida sexualmente por um tio, se faz empregada num minimercado, onde conhece José e onde revive o mesmo drama da adolescência; as duas últimas situações levam-na à casa de Bartolomeu (de Memorial do convento), um abastado português que veio fugido durante a libertação de África. Capitalista avarento, essa personagem que garantiu certa posição como rentista em Lisboa por conseguir contrabandear na sua fuga diamantes enfiados no ânus é um apaixonado pela obra de Saramago, colecionador de sua literatura e amigo deste, constituindo um par antitético qual Deus e o Diabo em O evangelho segundo Jesus Cristo. O jogo ideológico aqui é outro, uma vez que Bartolomeu incorpora o português que não se libertou do tempo anterior ao 25 de Abril.
 
Além desses, é possível situar, dentre outros: um Raimundo Silva (de História do cerco de Lisboa), ele é o editor de José, quem o contrata com um cheque sem fundos para uma biografia de Saramago; um Domingos Mau-Tempo (de Levantado do chão) aparecido como um emigrado cabo-verdiano, próximo a Lídia, segurança de rua e agiota — é o homem-empecilho e o de gesto nobre na vida de José; e um Fritz (o cornaca de A viagem do elefante), livreiro que num retorno à Índia para encontro com o pai perde, repentinamente, a visão (alusão ao Ensaio sobre a cegueira). Com personagens e situações, José Luís Peixoto, retrabalha passagens da obra saramaguiana, constituindo um complexo jogo de espelhamentos que não cumprem repetir temas, formas e obsessões do escritor-motivador e sim constituir outras feições.
 
Ao denominarmos indefinidamente personagens que são assinaladas individualmente pelo nome próprio, reconhecemos, no jogo ficcional proposto por José Luís Peixoto a reiteração simultânea à criação. Quer dizer, Lídia é e não é a personagem de O ano da morte de Ricardo Reis, Bartolomeu é e não é a personagem de Memorial do convento, Raimundo Silva é e não é a personagem de História do cerco de Lisboa e, assim sucessivamente. Reside aqui um papel singular do romance; o que se retoma pelos designativos não são verdadeiramente as personas, mas sua simbolização. O que designa no romance saramaguiano uma personagem tem importância no romance peixotiano e, por sua vez, para o leitor. Assim, a sagacidade e a independência, por exemplo, são designativos que definem a Lídia de O ano da morte de Ricardo Reis e a Lídia de Autobiografia.
 
No diálogo entre os dois Josés no instante de revelação sobre o livro de José que Saramago lê e nele se reconhece tal e qual, é conseguida certa explicação a partir dessa ideia do símbolo: “O álcool e o póquer são símbolos, ícones, são como as palavras. A palavra copo é incapaz de conter uma gota de água. Do mesmo modo, o álcool e o póquer contêm muitos significados para lá dos mais próximos.” Reside nisso uma definição para o próprio romance lido: este não é um mundo irreal, nem real, mas um mundo possível, manifestado exclusivamente pela palavra.
 
Esse encontro recupera a mesma atmosfera de uma cena paradoxal de O evangelho segundo Jesus Cristo: em que Jesus descobre o pai e o Diabo como figuras de uma mesma moeda e toma ciência do seu destino no projeto ambicioso de Deus em expandir seu império. As revelações aqui são outras, também os destinos. Mas atendem pelo mesmo sentido de um reconhecimento. Descobrindo-se como os duplicados de O homem duplicado, isto é, se reconhecem dois e iguais, presenciamos um diálogo que aponta o fim do labirinto narrativo, ou quando, em definitivo, as situações se dobram ad infinitum diante do espelho. Esse encontro constitui-se praticamente num ensaio sobre o trabalho metaficcional desenvolvido por esse romance de José Luís Peixoto. É aqui que se explica o sentido do termo autobiografia para a obra em curso e afirma-se que as distinções preteridas pelo escrevente peixotiano não passam de ilusões alimentadas pelo poder da palavra.
 
Não esqueçamos que José, um substantivo próprio cuja natureza simbólica assumida na literatura é a da figura comum e que designa uma das personagens de Autobiografia, é um nome que forma parte com a personagem em relação, José Saramago. O sobrenome deste par assume ante o nome uma designação própria, como se José e Saramago fossem dois substantivos independentes. O dilema, aliás, esclarece duas condições existenciais do escritor, esclarecidas ao longo do romance ora lido: a vida íntima, designada pelo primeiro nome; e a vida pública, pelo segundo. Essa é, assim, outra via pela qual os dois Josés — sabendo que um é produto de outro — formam e se entendem uma só figura, aquela, tal qual a do “Discurso de Estocolmo” é aprendiz da sua ficção.
 
Reiteradas vezes, José Saramago descreveu a literatura como incapaz de salvar o mundo, mas este livro de José Luís Peixoto está repleto de milagres propiciados exclusivamente pela literatura: é graças ao encontro com a obra saramaguiana que o protagonista de Autobiografia refaz o seu caminho de marginal; o vienense da livraria encontra em Lisboa um lar graças à leitura de El año de la muerte de Ricardo Reis, romance que leu em espanhol acreditando que o lia em português e é a obra de Saramago a companhia nos anos de se escuridão que se seguem — lê igualmente o romance de José e nele também encontra-se; a empregada de Bartolomeu carrega consigo um livro de Saramago surrupiado da biblioteca; seu patrão é, apesar de totalmente oposto ideologicamente ao escritor, um seu colecionador e leitor assíduo, o que, certamente, não o faz um déspota. E, por conta própria, poderíamos acrescentar que, graças a Saramago, José Luís Peixoto fez-se para além das fronteiras de seu país e pode escrever um romance como esse que é, de alguma maneira, uma leitura muito coerente sobre a vida enquanto tomada de decisões — sim, todas as personagens aqui atravessam essa posição de deixar o aparente estável mas abusivo por uma condição de realizadas subjetivamente.

 
* Parte das ideias neste texto foi desenvolvida com mais detalhe no texto “Autobiografia, de José Luís Peixoto. Refigurações”. Este texto deve ser publicado nos livros que compõem os arquivos do Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada 2021, onde foi apresentado.
 

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