Oito (está bem, nove) poemas de António Osório

Por Pedro Belo Clara

António Osório. Foto: Arquivo do jornal Público. (Reprodução).


 
 
IN MEMORIAM
 
Ao lado do corpo de meu Pai
chorava esta pobre carne.
E de repente chegou a tua
e minha felicidade:
 
A teu lado estou
sorrindo a chamar-te,
espero que regresses a casa,
ansiosamente corro para a porta.
 
E ao colo sinto o teu calor,
contigo passeio pela mão,
pergunto, pergunto e tu respondes
ocultando o fim da vida.
 
Ver-te dormir, alegria
igual à tua
quando de noite
tranquilo eu respirava.
 
Tenho três anos e tu, Pai, és jovem,
grande, senhor do mundo,
deus docemente temido
desde o início.
 
Assim te amo agora sem lágrimas.
Que deste modo teus netos
um dia se recordem de mim,
na tua, minha e deles
pura ignorância da morte.
 
 
A MEUS FILHOS
 
A meus filhos
desejo a curva do horizonte.
 
E todavia deles tudo em mim desejo:
o felino gosto de ver,
o brilho chuvoso da pele,
as mãos que desvendam e amam.
 
Marga,
meu fermento,
neles caminho e me procuro,
a corpo igual regresso:
 
ao rápido besouro das lágrimas,
ao calor da boca dos cães,
à sua língua de faca afectuosa;
 
à seta que disparam os ibiscos,
à partida solene da cama de grades,
ao encontro, na praia, com as algas;
 
à alegria de dormir com um gato,
de ver sair das vacas o leite fumegante,
à chegada do amor aos quatro anos.
 
 
BOSCH, O INÍCIO
(I – Tríptico das Delícias)
 
Enquanto Adão, Eva e o mais
eram criados, um gato abocava
o primeiro rato.
Iniludível a prepotência
do felino. Adão soerguido
Eva desejava, nudez sua. E Deus
abençoava os seus viventes
consagrando o bem e o mal que lhes fizera.
 
 
PESO DO MUNDO
 
A poesia não é, nunca foi
uma enumeração ou composto
de exuberância, bondade,
altitude, nem arado
ou dádiva sobre chão
prenhe de mortos.
 
Nem o arrependimento
de Deus por ter criado o homem
com o rosto da sua memória,
ao lado de seus vermes.
 
Tão-pouco dos que amam
abrindo a porta límpida
do corpo e chovendo sobre a terra,
ou carregam como tartarugas
o peso do mundo.
 
Nem reverência por um tigre,
pela leveza maligna de todas as patas,
pela sonolência junto à estirpe
aprisionada também
na dureza de ser tigre.
 
É o milagre de uma arma
total, de uma só palavra
reduzindo o átomo à completa inocência.
 
 
MÃE QUE LEVEI À TERRA
 
Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
que farei destas tuas artérias?
Que medula, placenta,
que lágrimas unem aos teus
estes ossos? Em que difere
a minha da tua carne?
 
Mãe que levei à terra
como me acompanhaste à escola,
o que herdei de ti
além de móveis, pó, detritos
da tua e outras casas extintas?
Porque guardavas
o sopro de teus avós?
 
Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
vejo os teus retratos,
seguro nos teus dezanove anos,
eu não existia, meu Pai já te amava.
Que fizeste do teu sangue,
como foi possível, onde estás?
 
 
UM SENTIDO
 
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
 
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
 
 
A CONSOLAÇAO DA POESIA
 
Não gosto dos silenciosos
cemitérios. Os Gregos
e os Romanos tinham
a acompanhá-los,
ao longo das estradas,
uns versos inscritos
na pedra tumular,
que tantas vezes
os expunha como seres
orgulhosos do que tinham sido.
Acreditavam na poesia,
nunca na morte.
 
 
A FELICIDADE DA LUZ
 
A felicidade da luz é a felicidade
do sangue que percorre
o nosso corpo, e dá tudo o que tem.
A luz é feliz
porque acompanhou
a infância do mundo.
É como aqueles poetas
que tentam fazer
dos seus versos
água bastante, perdurável.
Apenas o nevoeiro toca
nessa claridade, mas a luz
continua no alto
prestável, soberana.
(Que pena, meu amor,
que nela não estejas.)
 
 
______
 
 
António Osório nasceu na cidade de Setúbal, em 1933, filho de pai português e mãe italiana. Desde cedo influenciado pelo melhor de ambas as culturas (como o próprio admitiria um dia ao afirmar que se por um lado, enquanto muito jovem, o pai lhe lia Camões, sua mãe lhe dava a conhecer Dante na língua nativa), o pequeno António cresceu num ambiente fértil ao conhecimento e à experiência directa de várias formas de arte, o que moldou de modo vincado o seu gosto artístico e o carácter enquanto homem e poeta.
 
Ainda como estudante universitário começa por dar os seus primeiros passos no mundo literário, maioritariamente na publicação que cria em 1954 com os seus colegas de liceu, Pedro Tamen e Cristovam Pavia, que revelar-se-iam também poetas de proa: a revista Anteu. Formou-se em Direito dois anos depois, e dedicaria toda a sua vida ao exercício da profissão, chegando até a ser bastonário da respectiva ordem no decorrer da década de oitenta. Ambas as disciplinas, Direito e Poesia, como se depreende, sempre estiveram de mãos dadas na vida de António Osório, ele que as considerava “coisas dignas de andarem lado a lado”, sendo por isso impossível a escolha exclusiva duma via em detrimento doutra.  
 
Talvez pelo envolvimento profundo na área do Direito o seu primeiro livro chega algo tarde, embora a produção poética não tenha estagnado — comprovando-se pelas colaborações em revistas de renome como Seara Nova e Colóquio/Letras, entre outras. Decorria o ano de 1972, contava o autor com trinta e nove anos de idade, quando nasceu para o prazer dos seus futuros leitores A Raiz Afectuosa. De publicação algo modesta a início, a edição, de autor, rapidamente se espraia e chega a diversos níveis e recantos do panorama cultural português de então, espantando desde logo pela sobriedade do verso, pela luz quente e fraternal emanando de cada palavra, como que esculpida e colocada na devida ordem por mão sábia e amorosa.
 
Esse livro, aliás, revelava já muito daquilo que facilmente se viria a identificar como sendo a assinatura poética de António Osório. Há, portanto, uma linha comum a todo o seu trabalho que o poeta nunca abandonou, sublinhada tantas vezes, por exemplo, na comum repetição de certos vocábulos: a luz, o afecto, um humanismo profundo, uma revolta contra o que considera ser injustiça, a dor pelas imperfeições do mundo, uma compassiva fraternidade oferecida de coração aberto — e mais tarde, mais aprofundado, o salto para outras artes de eleição do poeta, como a música (clássica, sobretudo) e a pintura, transpostas com mestria em diversos exercícios do ofício poético.
 
Haveríamos ainda de esperar alguns anos até à edição do próximo livro veramente significativo na bibliografia de António Osório, sendo tal adjectivo concedido, sobretudo, por aplicação dum critério não só de qualidade, mas também de impacto no cômputo geral da obra do poeta: A Ignorância da Morte, o livro que apresenta alguns dos mais belíssimos e comoventes poemas que Osório escreveu.
 
Seguiram-se outros, sempre espaçados por alguns anos de diferença, mas ainda assim obras dignas de nota, como será o caso de Décima Aurora, de 1982, Planetário e Zoo dos Homens, de 1990, e A Felicidade da Luz, de 2016 — um pequeno e cintilante livro, atravessado, porém, de enorme melancolia e saudade; uma obra típica de fim de vida (mesmo que tal ao ser vivente permaneça sempre incógnito), onde o peso da memória supera facilmente qualquer que seja a graça concedida pelo momento presente. Pelo meio, destaque-se o facto de alguns trabalhos terem sido editados com ilustrações de nomes tão significativos do universo artístico português quanto Manuel Cargaleiro e Júlio Pomar, no firmar dessa benemérita aliança entre poesia e pintura.
 
Não é um autor de obra extensa, mas do que escreveu sobressai transversalmente uma integridade ímpar, uma sinceridade intelectual e de sentimento deveras louvável, uma linha sóbria e limpa que soube nutrir a virtude de guardar a sua luz mesmo no instante mais sombrio. O mais será dizer que a poesia de António Osório reflecte translucidamente, sem qualquer desvio ou engano, o coração vivo do próprio criador. Nestas palavras por si mesmo proferidas talvez encontremos a confirmação do que pretendemos ilustrar: “afectuoso, discreto, entregue à busca do essencial, tantas vezes indignado (com razão), amando a poesia, a pintura e a música, procurando a luz fraterna...”.
 
Não deixa de ser curioso o facto destas últimas palavras serem precisamente o título escolhido para a sua antologia poética, editada em 2009 — que lhe valeu o Tributo de Consagração, outorgado pela Fundação Inês de Castro. Sinal, decerto, de como a personalidade se plasma na criação artística, imune, aqui, a fingimentos intelectuais.
 
Diremos do colectivo da obra o ser simples, mas veramente luminoso — importa ressalvar. Não é propriamente um poeta de mergulhar a fundo, como meio de denúncia, nas misérias da humanidade, de tecer filosofias sobre sistemas ou perder-se nos meandros duma mente vadiando pelos seus próprios devaneios; Osório é simples, como dissemos (e quão complexa é a simplicidade!), de clareza fluida, celebrativo, exaltador, sensível ao mundo e a todas as coisas que o habitam, seja homem ou bicho ou árvore, um amante da poesia, da música e da pintura (sobretudo) dos grandes mestres. Na reunião de tudo isto, conseguiu, na justa opinião do afamado crítico João Gaspar Simões, “um corpo poético como outro não havia nos anais do nosso lirismo contemporâneo”.  
 
Como tantas outras, a poesia de Osório tem um grande carácter pessoal, embora não se diga, de todo, diarística ou hermética. Muitas vezes os seus poemas assumem o lugar de retratos, tanto de pessoas em particular como de memórias de situações idas, um feliz compêndio de muitos familiares seus, assim imortalizados, bem como animais que amou ou gente simples, de traço rural, que conheceu e com quem privou certo tempo (a sua infância foi largamente passada em quintas que eram propriedade da família). Só por essa via descortinamos logo o indisfarçável lado humanista da sua obra, o que também a torna acessível a qualquer leitor, sendo fácil criar uma relação com ela, pois revemo-nos sem obstáculo em sentimentos tão universais quanto a dor da perda, a saudade de tempos felizes, o amor partilhado com aqueles que tanto amámos.
 
O trabalho poético de António Osório já foi alvo de diversas considerações por parte de poetas e críticos competentes, nomes como David Mourão-Ferreira, Fernando Guimarães ou Fernando Pinto do Amaral, além dos já citados no decorrer destas linhas, pelo que estamos, indubitavelmente, diante dum autor de importância maior, de qualidade reconhecida e digno da divulgação ofertada aos poetas de maior craveira — ainda que a subjectividade de certas apreciações possa ser duma afiada crueldade, porque facilmente tomba em injustiça. Dos seus dezoito livros publicados, entre poesia e ensaio, vários foram editados no Brasil, Espanha, França e Itália, por exemplo; além de possuir trabalhos traduzidos em línguas, digamos, menos convencionais como o catalão, o romeno e o croata.
 
Deixou-nos no passado dia 18 de novembro, aos oitenta e oito anos de idade, este irmão da luz e da música, filho digno dos ideais maiores que poderão habitar e comandar o coração dos Homens, o criador de “uma das nossas constelações poéticas mais inequivocamente originais”, como diria essa outra figura de enorme relevo na cultura portuguesa, infelizmente também já desaparecida — Eduardo Lourenço.
 
 
Um dia pensará alguém, lendo estes versos,
por que razão ocultou
(de propósito) tanta piedade
e sofreu de mão aberta
por rapaces, ébrios
e um lobinho que sua mãe enterrou
escavando com focinho cruel o túmulo,
procurava escrever direito
por linhas tortas
e amava a tal ponto a vida
que dela ficou aquém, com suas garatujas;
porque quis ser folhas de azinheira
para uma cabra-montês, pagando o mal
dos outros e o seu
e tímida inveja tinha das aves
(só delas) e dessas delicadas
entabulações amorosas,
que o assombravam tanto como a perfídia,
um pedinte, a luxúria
ou a consoladora luz matutina;
porque quis, não ao dilúvio,
mas à arrependida recessão das águas,
penou com as reses
a caminho do seu fim, como uvas
de camião no Outono,
e todas as estações o angustiavam
(não só a Primavera), devido à perfeita,
à meticulosa organização do nada;
e porque amou tão pouco, ele desejoso
de voltar ao fundo de sua mãe,
não por afã da morte ou mórbido enfado,
mas para recomeçar como criança.
 
 
(António Osório, “Um Dia”, A Ignorância da Morte, 1978)

 
Nota

* Os poemas “In Memoriam” e “A Meus Filhos” foram editados no primeiro livro do autor, A Raiz Afectuosa, de 1972. “Bosch, o Início (I – Tríptico das Delícias)”; “Peso do Mundo” e “Mãe que Levei à Terra” marcaram presença no livro A Ignorância da Morte, de 1978. Já o poema “Um Sentido” foi retirado da obra O Lugar do Amor, de 1981, e os poemas “A Consolação da Poesia” e “A Felicidade da Luz” editaram-se no derradeiro livro de originais que o autor publicou em vida, obra essa que ostentava o mesmo nome do último poema atrás citado — e foi lançada em novembro de 2016. À excepção dos poemas desse livro, todos os demais são aqui apresentados na sua forma, diga-se, definitiva, isto é, conforme constam na antologia que reúne a obra integral do autor: A Luz Fraterna, de 2009.

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