A complexa relação entre Truman Capote e Harper Lee

Truman Capote e Harper Lee

Poucos lugares tão pequenos produziram tanto talento literário. Duas das maiores figuras das letras viveram em Monroeville, um povoado de cerca de mil habitantes no interior do Alabama, sem qualquer via de comunicação e distante de qualquer grande cidade. Ambos escritores, Truman Capote e Harper Lee, eram vizinhos.

A casa onde viveu Capote já não existe; resta um muro que delimita as fronteiras do terreno. Onde era a casa de Lee há agora uma sorveteria Mel’s Dairy Dream. Mas neste pequeno espaço, resumido a alguns metros quadrados da rua principal de Monroeville, ambos compartilharam muitas coisas: as brincadeiras infantis e as primeiras aproximações com a literatura são, de certeza, duas delas. Ali se forjaram carreiras formidáveis: a de Capote, errática, genial, atormentada; a de Lee, reservada e tranquila como a vida desses lugares no deep South, o sul profundo.

Capote, autor de Bonequinha de luxo e A sangue frio (romance que chega aos cinquenta anos agora em 2016), entre outras obras, passava temporadas na casa de uns parentes em Monroeville. Lee vivia com os pais e as irmãs. A autora se inspirou em seu pai, A. C. Lee, para criar a personagem de Atticus Finch, o advogado que, no sul segregacionista dos anos 1930, defende um negro falsamente acusado de estuprar uma branca no romance O sol é para todos, única obra da escritora publicada nos 1960. Em 2015, veio o que as editoras no mundo inteiro chamaram de continuidade da obra, mas isso é outra história; o leitor apenas saiba que não é continuação coisa nenhuma, mas um rascunho do que seria o que continua ainda é o único romance de Lee.

A amizade entre Truman Capote e Nelle (é este o seu primeiro nome e como é conhecida na sua cidade natal) foi como se se tratasse de dois irmãos. Mas, como toda relação entre irmãos não deixou de ser tragada também pela força do ressentimento e da incompreensão. E parece que isso não foi algo que ficou guardado como segredo entre os dois, ainda que uma parte compreenda o tema como produto do eterno fla-flu entre escritores desenhado pela especulação da mídia nascida do burburinho popular.

Em Monroeville há mesmo essa disputa entre Capote ou Nelle, como há entre alguns leitores ser de Sartre ou de Camus; em Monroevillie cada um é peça-chave de um grupo específico; a relação de oposição entre escritores é, em grande parte, alimentada pela força do ego dos envolvidos na disputa – que o diga Mario Vargas Llosa que guarda consigo o embaraçoso desafeto com Gabriel García Márquez. Muito ego envolvido. A afirmativa é de uma moradora de Monroeville ao jornalista Marc Bassets do jornal El País, matéria base deste texto*.

“Me chamo Charles Baker Harris. Sei ler”. Assim se apresenta, ao encontrar-se pela primeira vez com seus vizinhos, uma das três personagens infantis de O sol é para todos. Harper Lee usou como base para a criação de Dill, o apelido de Charles Baker Harris, Truman Capote; ele é um menino prestes a completar sete anos mas ainda muito pequeno para sua idade. “Sou pequeno mas sou grande”, sublinha a personagem noutra passagem do romance.

O sol é para todos é ficção. Mas, como toda obra ficcional, não deixa de beber da vivência do seu escritor; no caso dessa obra de Harper Lee, nos é oferecido um retrato muito próximo da realidade, sobretudo quando o assunto é a relação entre a ainda menina não-romancista e o menino Capote. “Me sentia desgraçada sem ele”, diz a narradora, Scout, personagem alter-ego de Lee. “No início do Verão”, escreve em outro momento, “me pediu que casasse com ele, mas em seguida se esqueceu”. Dill é um menino imaginativo, “um Merlin de bolso, cuja cabeça fervia com planos excêntricos, com desejos estranhos, com caprichos pitorescos”.

“O vínculo que os uniu”, escreveu Gerald Clarke, biógrafo de Truman Capote, “era mais forte que a amizade: era uma angústia em comum”. “Não tinham outros amigos verdadeiros. Nelle era demasiado rude para a maioria das meninas e Truman demasiado delicado para a maioria dos meninos”.

Na vida literária, um e outro decidiram pelo romance. A. C. Lee emprestou a ela uma máquina de escrever e os dois dividiram o aparelho para contar as primeiras histórias. A colaboração nascida aí, real e imaginária, nunca acabou. Ambos foram para Nova York; Truman embarcado numa precoce carreira literária, recebido como menino prodígio da literatura do pós-guerra e Nelle trabalhando numa empresa aérea e preparando em segredo sua obra-mestra.

No outono de 1959, depois de dois anos de correções, reedições e reescritas (é nesse período que nasce o rascunho publicado agora como Vá, coloque um vigia), Harper Lee entregou o manuscrito de O sol é para todos à editora J. B. Lippincott. Alguns dias depois, Truman Capote leu no The New York Times a notícia do assassinato de uma família de fazendeiros em Holcomb, um povoado do Kansas. Chamou a amiga de infância e convidou-a acompanhar-lhe ao lugar dos acontecimentos a fim de preparar uma reportagem para a revista The New Yorker.

Truman cria com um relato minucioso de um fato real, elaborado com técnicas do jornalismo mas narrado com ferramentas da ficção, o grande romance que faltava à história da literatura estadunidense. No Kansas de 1959, “uma parte do país tão alheia a ele como às estepes da Rússia”, conforme escreve Clarke na biografia Capote, Truman parecia uma alienígena. Alguns em Holcomb suspeitavam que ele – dândi, extravagante e urbano – era, enquanto não se fez o desfecho das investigações policiais, o verdadeiro assassino da família Clutter.

Truman Capote, Scott Wilson e Robert Blake durante as filmagens de A sangue frio

“Truman ficava de fora e ninguém queria falar com ele”, disse anos depois Harold Nye, um dos detetives do caso. “Mas Nelle saiu de sua posição e estabeleceu uma relação com as pessoas. Esforçou-se e conseguiu os contatos com os locais e pode colocar Truman próximo de tudo”, destaca Nye, citado por Charles Shields, biógrafo de Harper Lee. Sem Nelle, Truman não haveria rompido a desconfiança dos habitantes de Holcomb. Sem ela, muito provavelmente, não haveria tido acesso à fonte decisiva de seu relato, o agente Alvin Dewey. Ela trabalhou de mãos dadas com o escritor nas entrevistas e no desenvolvimento da investigação jornalística, como um Woodward e Bernstein antes do tempo ou um Holmes e Watson. Não é exagero dizer que sem Harper Lee, A sangue frio não haveria existido. Nunca, desde as brincadeiras infantis em Monroeville, a colaboração havia sido tão íntima. Mas nunca mais voltaria a ser.

Na biografia autorizada de Harper Lee, Shields descreve a surpresa da escritora quando, em janeiro de 1966, abriu um exemplar do recém-publicado A sangue frio. O único reconhecimento a todo seu trabalho figurava na dedicatória. E era dividido: “Para Jack Dunphy [então companheiro de Capote] e Harper Lee, com meu amor e gratidão”. Nada mais.

“Que Truman não houvesse reconhecido a Lee não era mais um disfarce ou um abandono. Era uma traição”, escreve Shields. Capote convidou sua velha amiga para uma festa lendária de celebração no Plaza de Nova York em 28 de novembro de 1966. Mas Lee declinou o convite.

Gregory Peck e Harper Lee durante as filmagens de O sol é para todos.

O problema não foi apenas o fato de Capote não reconhecer adequadamente a contribuição de Lee para A sangue frio. Os agravos se acumulavam de outros carnavais. O sol é para todos se converteu num fenômeno de vendas. Hollywood logo rodou uma versão cinematográfica da obra com Gregory Peck no papel de Atticus Finch. Lee ganhou o Pulitzer, o que, segundo alguns biógrafos alimentou os ciúmes de Capote que nunca conseguiu tudo isso. Tampouco se esforçou muito para esclarecer os rumores segundo os quais ele havia escrito o romance de Harper Lee.

“Ele não teve nada ver [com O sol é para todos]”, disse Alice Lee, a irmã mais velha de Nelle numa entrevista à jornalista Marja Mills, autora de The mocking bird next door. As irmãs Lee o detestavam porque Capote havia espalhado o boato de que a mãe delas havia tentado afogar Nelle quando criança. “Truman dizia qualquer coisa quando se enraivava”, conclui Alice.

No citado livro, Truman Capote é retratado como um mentiroso compulsivo. Uma das ironias da história é que A sangue frio, o romance de não-ficção, na verdade tinha mais de romance que de não ficção. E O sol é para todos, um romance ficcional contém verdades – sobre a infância, sobre o trauma do racismo, sobre a identidade dos Estados Unidos – que mais de meio século depois persistem.

“Truman era um psicopata, querido”, disse certa vez a própria Harper Lee a uma jornalista. “Acreditava que as normas que se aplicavam a todo mundo não se aplicavam a ele”.  


* Parte do conteúdo é do texto "La historia de Truman y Harper Lee".

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