O amigo que não pôde salvar Federico García Lorca

Por Sergio del Molino

Federico García Lorca. Um dos últimos registros fotográficos do poeta.


"Quando eu morrer, / com minha guitarra enterrai-me, / sob a areia”. São versos de “Lamento da morte”, um poema que foi musicado por Carlos Morla Lynch. Durante os anos da República, Lorca o cantou ao piano em muitas madrugadas no enorme apartamento de Morla da rua Alfonso XII de Madri, que sempre a cada noite, depois do jantar, enchia-se de poetas, intelectuais e gente local que encontram em seus sofás e em seu bar móvel um refúgio aristocrático.  Federico García Lorca era a alma daquelas reuniões literárias, o menino engraçado que sabia cortar as discussões políticas com uma gargalhada e começar arrancar notas do piano quando alguém bocejava.

Há muito na vida breve de Lorca que tem um ar premonitório. Esse gosto por tragédia que o converteu em tragédia própria é um. Há versos sobrenaturais, como estes de “Lamento da morte”, que já contém em si uma inquietude. Mas vê-los escritos na partitura composta por Morla arranca calafrios: esses arranjos com as indicações poco piu mosso e très lent et très lié são a aceitação dos desejos do amigo, desejos que não pode cumprir. Não só não pode evitar sua morte, foi incapaz de dar-lhe uma sepultura sob a areia. A grande tragédia, que parece escrita pelo mesmo Lorca, foi que Carlos Morla Lynch salvou a vida de milhares de pessoas cujo destino parecia o mesmo do poeta, convertendo-se num desses heróis imensos que a história se resiste a reconhecer, mas não pode fazer absolutamente nada por seu amigo de alma.

Carlos Morla Lynch foi conselheiro da embaixada do Chile na Espanha entre 1928 e 1939. Ao estourar a guerra em 1936, o governo chileno lhe deu liberdade para abandonar o país com sua família, mas preferiu não ir embora de Madri, onde permaneceu a cargo da embaixada e ofereceu refúgio (nela, em sua casa e em vários apartamentos que alugou para tal fim) a mais de duas mil pessoas que fugiam da violência política. Fez o mesmo com os republicanos que lhe pediram asilo em 1939, quando as tropas franquistas entraram na capital. Nunca pediu nada em troca nem impôs condições a ninguém, e arriscou sua vida e a da sua família noite após noite ante uma junta de defesa que não podia (nem, seguramente queria) garantir sua imunidade diplomática.

Nem sequer o testemunho de seus diários, publicados pela primeira vez em 1958 numa edição muito filtrada pela censura, dá conta da dor que deve ter lhe atingido quando soube da morte de Federico, quem acreditava estar salvo em Granada, ao cuidado de uns parentes. Foi em 1º de setembro de 1936. Morla estava na Plaza Mayor e lustrava os sapatos, uma limpeza ociosa na cidade onde já não havia senhores com sapatos para lustrar, quando ouviu os vendedores de jornal gritarem que Federico havia sido fuzilado em Granada. Pensou ser uma mentira e passou toda uma semana até que a notícia fosse confirmada através de seus contatos diplomáticos. “Eu que o considerava invencível, triunfante sempre, menino mimado pelas fadas”, escreveu em seus diários. Madri se encheu de retratos fúnebres do poeta, já mártir, e Morla teve que seguir atendendo a seus milhares de refugiados sem poder dedicar muito tempo ao amigo morto que olhava das paredes.

A grande amizade de Federico e Morla permanece para a história da literatura na dedicatória de Poeta em Nova York: “A Bebé e Carlos Morla”. Refere-se a Bebé Vicuña, companheira do diplomático. Quando lorca a escreveu havia pouco mais de um ano que conhecia o chileno, mas já estavam unidos com uma intensidade que alguns terão suspeitado como mais própria aos amantes (embora Andrés Trapiello, grande especialista na sua figura e talvez seu maior apóstolo literário, argumente que este ponto não está claro nos diários) e na que sempre esteve muito presente, a morte. O conselheiro chegou a Madri vindo por Paris em 1928, onde acabava de enterrar sua filha Colomba, de nove anos. O casamento se deu em Espanha arrasado, em pleno luto por sua menina. Num passeio pela Grand Vía, chamou a atenção de Morla um título no mostruário de uma livraria: Romancero gitano. Leu várias vezes e encontrou em seus versos algo parecido com o consolo, sublinhando uma estrofe que também soa profética: “A noite se fez tão íntima / como uma pequena praça. / Lá fora, à porta, golpeando, / guardas-civis na cachaça”.

Morla então resolve conhecer o tal Federico, sobre quem todo mundo falava maravilhas em Madri; e Federico logo se converteu em seu amigo íntimo. Apesar de treze anos mais jovem, Lorca entendeu sua dor e seu catolicismo heterodoxo e livre, mas sentiu, tão parecido à sua ideia de religiosidade popular. Ambos tinham mais filantropia que ideologia. Ambos queriam muita gente e se faziam querer. Logo depois de se conhecerem, Lorca dedicou algumas canções “à maravilhosa menina Colomba Morla Vicuña, adormecida piedosamente no dia 8 de agosto de 1928”.

Viram-se pela última vez em 8 de julho de 1936 em sua casa em Madri. Os participantes da cena comentavam as notícias em tom apocalíptico. Havia preocupação, a cidade estava muito agitada. “Federico hoje falou pouco – anotou em seu diário; encontra-se como desmaterializado, ausente, em outra esfera. Não está como das outras vezes, brilhante, espirituoso, luminoso”. Aquela noite Federico só fez uma contribuição para a tertúlia política: “Eu sou do partido dos pobres, mas dos pobres bons”. Foi a última declaração que Morla ouviu da boca do poeta.

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* Este texto foi publicado no jornal El País com o título de "El amigo que no pudo salvar a Lorca"


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