O homem do século

Por Luiz Mendes

Ilustração Eoin Ryan.


Sobre a capacidade única de escrutínio do homem pela literatura neste século 

Há um homem a ser decifrado... sempre! E quem somos neste início de século? Em que nos diferimos de nossos vizinhos do século XX? Bom, talvez para você, que, como um Gurgel, acredita que a literatura deva ser primordialmente uma imersão nos clássicos, questões como essas não façam sentido e, por isso, parar a leitura por aqui certamente é o melhor a se fazer. Mas se, como eu, acredita que um dia um clássico foi um contemporâneo, atual, e que, por isso, se apropriou das características do homem de sua época e as interpretou sob o véu da ficção, vamos prosseguindo...

Quero dizer que um clássico como Odisseia, por exemplo, dialoga com sua época, a Antiguidade Grega, a grandiosidade das conquistas helênicas, a visão de mundo dos gregos sobre vida, morte, família e sociedade. Tudo isso pode parecer distante de nosso mundo contemporâneo, mas torna-se íntimo quando olhamos para Odisseu como um homem capaz de superar obstáculos ‘homéricos’ (não é a toa a sempre atualidade dessa expressão). Um homem que luta para não perder sua memória e, mesmo 20 anos longe de casa, não perdeu a esperança do retorno. E “memória” é um tema literário tão atual! Sem falar na ideia de ‘eterno retorno’ a que estamos sujeitos. É por razões assim que nunca vamos parar de ler Odisseia, mesmo sendo uma obra com características históricas bem definidas pelos traços da Antiguidade.

Refletindo sobre tudo isso e acreditando nas perguntas feitas inicialmente, não tive dúvidas de que estava na hora de experimentar leituras contemporâneas com os jovens sob minha tutela. Já havia feito isso antes, mas desta vez, eu estava certo de que deveria ser algo mais sistematizado, consistente. Algo que que funcionaria como o eixo de um trabalho mais longo. Pensei em algo muito próximo de nós, tão próximo que seria possível uma identificação imediata do personagem com os jovens leitores. E, após intensa procura em suplementos literários, cheguei ao Enclausurado, do inglês Ian McEwan.

Para quem conhece a cuidadosa elaboração estética desse autor, sabe da qualidade de sua ficção. E, antes de mais nada, posso garantir o quanto fiquei surpreso com a recepção da obra pelos jovens:

Silêncio reflexivo.

Olhos esbugalhados.

Cenhos franzidos.

Expressões de raiva.

Movimentos de indignação... “Psiu! Estou acabando a leitura!”.

Mais silêncio até a pausa que fiz na narrativa.

“Não para!”. Mas tive que interromper, estrategicamente...

Saí do grupo de jovens grato pela existência da história... Os jovens haviam sido capturados.

Próxima aula: alguns com livro em mãos. A leitura prosseguiu. Reações similares às anteriores. Nova pausa estratégica... Hora de falarmos sobre esse, no mínimo, estranho narrador confinado, enclausurado, que nos provoca reações claustrofóbicas...

Numa clausura, numa redoma, confinado! Enclausurado no ventre de sua mãe, um feto, aos oito meses, testifica uma conspiração de sua mãe com seu tio, contra o pai. O narrador é ele, que, privado de quase todos seus sentidos, nos confidencia sua admiração pelo pai, poeta decadente, enganado, inocente (?!); sua raiva pelo tio burro, mas mesquinho e ardiloso, e seu amor desconfiado pela mãe, linda e, em sua beleza, adestradora de homens...

Dito isso aos alunos, associado à leitura que fizemos dos capítulos iniciais, retomei um detalhe crucial... “Eu disse ‘privado de quase todos os sentidos’... Ele ouve. E, obviamente, só nos conta o que seu ouvido de feto é capaz de testemunhar...”.

Silêncio...

“Podemos confiar em um narrador assim?”
...
“O que acham?”
...
Fiquei curioso sobre o sentido do silêncio. Apenas olhares atentos. Se houvesse algum jovem desatento ou entretido com outra coisa, nem me importaria. Já tinha ganhado a maioria e o apático, se existisse, seria ofuscado pela maioria atenta. O que poderiam estar pensando? Afinal, os capítulos lidos nos revelam um narrador interessante, simpático.

“Acho que não...”, quase inaudível.

“Fala mais alto! Não ouvi bem!”

“Acho que não!”, mais insistente, desta vez.

Ele estava certo. Compreendeu que, se perguntei sobre a confiabilidade do narrador, certamente haveria aí uma ponta de Iago, para fazer referência ao clássico Shakespeare, que inspirou McEwan na composição de “Enclausurado”, como nos revelou em entrevista.

“Por ora, só posso te dizer que você tem razão”.

Leríamos mais uns capítulos subsequentes que nos mostrariam a vulnerabilidade, a confusão de informações em que se mete o narrador. Algumas certezas, muitas dúvidas.

“É assim um narrador em primeira pessoa... Nem sempre inspira confiança. Afinal, ele é quem nos vai guiando a seu modo, em suas emoções e, quando vemos, estamos presos em suas tramas”.

Após essa declaração aos jovens, passaram-se vários dias até chegar ao momento em que os veria novamente para lermos um momento crucial na “pré-vida” do narrador: o pai biológico sempre soube de tudo. Não da conspiração sobre sua morte, mas do amante da mãe... Aliás, mais que isso, ele dá uma nova cartada e apresenta sua namorada. Uma grande virada na história havia sido dada. A vontade de a mãe matar o pai apenas cresce; o nosso confidente narrador, confuso: “por que o ódio de minha mãe? Sente ainda ciúmes de meu pai? Ela ainda o ama?”.  Acrescenta-se a isso um detalhe que atormenta o narrador o tempo todo: a possibilidade de ser abortado! Sim, claro. Em uma conspiração assim, em que se deseja aniquilar o pai, certamente faz sentido eliminar sua descendência ou tudo que o trouxer à memória... Este ponto foi um elemento crucial para segurar a atenção dos jovens o tempo todo.

“Minha mãe me ama? Ama! Tenho certeza que sim... será mesmo? Acho que sim... jamais ela me trairia...”. Acredito que essas questões do narrador eram, inconscientemente, questões dos jovens ali presentes. Não havia sido apenas uma vez em momentos anteriores de minha experiência que ouvia lamentos, revoltas e indignações daqueles jovens envolvendo suas relações com os pais, especialmente com a mãe... Estava aí uma razão de ser da literatura, da leitura daquele livro, um sentimento de identificação forte com as dúvidas do feto-narrador. Que lugar ocupo no mundo? Que espaço me resta neste confinamento? Uma sensação de um feto de oito a nove meses atravessa-nos, de alguma forma, nesses quase vinte anos de século XXI. Quando vai nascer? Quando haverá mais espaço longe desse confinamento? Longe? Não seria melhor não nascer? Ficar onde estamos e evitarmos uma catástrofe? Não é possível! A Natureza nos conclama! “Eu poderia viver enclausurado numa casca de noz e me consideraria rei do espaço infinito”, grita Hamlet; grita o homem deste tempo!

Pós-iluminista, como definido pelo autor, esse feto é complexo, mas às vezes hesita demais, duvida...

“Nos deixa em desespero!”, diz um jovem.

“Quase nos cansa de tão confuso!”, grita outro.

“Ressentido!”, manifesta entre risos, um jovem mais distante. Os risos, talvez por conta de ter lembrado de nossas discussões anteriores sobre o uso do termo por Nietzsche ao definir a humanidade do início do século XX... Não muito diferente de hoje, só mais imersa em complexidades – ou complicações? –; em multiplicidades – ou acepções?

“Não temos certeza. Apenas desconfiamos. Apenas sentimos... Isso! são sensações...”

Foi bom ter finalizado a discussão usando o termo “sensações”... Foi provocativo e os jovens lamentaram eu não ter terminado a leitura. Eles sabiam que agora deveriam individualmente terminar a leitura. Em solidão, como toda experiência literária autêntica requer!

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