Nenhum mistério, de Paulo Henriques Britto


Por Pedro Fernandes

Paulo Henriques Britto. Foto: Lucas Seixas.


Apesar da celebrada entrada da humanidade em um novo tempo como quando aconteceu na viragem para este século, há, dentre muitas, uma coisa que é derivada de um impasse e que precisa de ser pensada sem o grau do entusiasmo, se algum ainda resta. Aliás, esta coisa é produzida no interior do paradoxo desse tempo, que sempre nos diz, por um lado, sobre uma melhor posição nossa ante nossos desafios e por outro reafirma-nos no mesmo escuro no qual tateamos desde nossa origem. Quer dizer parece não existir certezas que tragam consigo as dúvidas. Para agora, o individualismo e o positivismo tornados em linhas de determinação única pelo Ocidente atravessam sua pior fase, se por ela entendemos o reaparecimento das verdades unilaterais quando à consciência da humanidade, se se mantém sã, já há muito haveria de desprezar essa maneira de nos compreendermos. A verdade se é agora múltipla continua a ser potência inquestionável e isso tem contribuído para um contínuo nosso mal-estar distinguido em parte pela ausência de diálogo por uma incapacidade de experimentar outras possibilidades de ver pela interrelação de pontos de vista. O maior perigo disso é que podemos novamente estar nos deixando conduzir para as saídas impraticáveis.

A coisa derivada dos paroxismos deste tempo é a nossa incapacidade para alguns sentidos que colocam em dúvida a principal das características que nos distinguiu desde sempre: a humanidade. Entusiastas repetem incansavelmente a ladainha do pós-humano ou a da maquinização do humano, discursos que precisam de um dos zelos que agora também já nos falta: a reflexão. Até onde eles não estão à serviço de reforçar um imaginário imposto por uma lei de mercado do capital mais perverso? Ou de nos impor outras alternativas de dominação capaz de sepultar de vez qualquer possibilidade que ainda nos reste de liberdade? Nesse contexto, como naqueles de espessa treva, a poesia tem sido resistência. E, possivelmente, de lá para cá, não perdeu, ou melhor, reinventou suas estratégias de resistir. Quando dizemos reinventou é porque o tempo em que a poesia se constitua a medida de leitura do mundo ou o meio de compreensão sobre sua complexidade nunca chegou e mesmo assim, às margens, ela tem sido mais contributiva para denegar nossos disparates que qualquer leitura sobre nós mais inovadora e logo mais avançada.

É perceptível então que a marca principal desse novo tempo é a negação dos mistérios pela compreensão segundo a qual tudo que necessitamos ou utilizamos na vida prática aparece explicado pela técnica e pela ciência; e sobre aquilo que nenhuma das duas formas consegue compreender simplesmente ousamos praticar dois gestos, incorporá-lo à ordem aparente das coisas ou negá-lo sob a égide segundo a qual o não-explicável não nos atinge e será, algum dia, solucionado pela razão. Um tempo como este é o que volta a flertar com a morte da poesia. Objeto entre os mistérios e possivelmente, ainda que a técnica e a ciência persigam estratégias de manipulação e determinação, a poesia não deixará de ser manifestação e fenômeno, duas determinantes indetermináveis. Na ocasião que se decreta a morte da poesia ou a invalidade do seu discurso para a ordem das coisas ou nossas práticas se revive com mesma feracidade os tons dos fascismos e dos sectarismos. A morte da poesia é sempre uma morte da humanidade.

Se resta alguma sorte nisso tudo, é que o poeta, sempre à margem de todas as ordens não se entrega ao indubitável. Isso justifica porque precisamos dele em tempos como estes: pálidos, sem sentido ou de atmosfera toldadas pelas cinzas dos totalitarismos que querem à base da imposição negar o horror que eles mesmos propiciaram. Em tempos de indigência, diríamos, o poeta não apenas é necessário, é imperativo. A poesia nos restabelece o pensamento pela negação das condutas da imposição racional. Afinal, não somos apenas o que se explica, somos sobretudo o mistério. É de se notar que, enquanto criação, o poema é sempre um contradiscurso do estabelecido. Sobre o pós-humanismo, por exemplo, imprime-se outros efeitos que ao acentuar o corpo-máquina revalida os mistérios impossíveis de se justificá-los pelas tintas da razão, embora o próprio poema se aproprie, por vezes, da objetividade, signo do racional – aqui vale citar os dois livros do poeta Alexandre Guarnieri, Casa das máquinasCorpo de festim.

É o caso também de Paulo Henriques Britto e o seu Nenhum mistério, título que por algum efeito, possivelmente apenas o eco da memória, nos leva para o um de Elizabeth Bishop, de quem aliás, o poeta foi tradutor, “A arte de perder”. De alguma maneira se pode dizer que este livro [o do poeta brasileiro] busca catar do mesmo imaginário da poeta estadunidense uma forma de pela descolonização do imaginário dominante a existência da poesia mesmo na ausência de seus sentidos determinantes: o mistério e o espanto. O poeta logo propõe uma ampliação da condição do poema na era do tecnicismo ou do cientificismo ao retomar que sua ordem é a ordem de todas as coisas e que o poeta neste contexto de desfazimento dos sentidos é também um ser à procura. Não um alheado ou estrangeiro ao próprio mundo, mas um continuador de ensimesmamentos, ainda que não resida no seu intuito a tarefa – hercúlea e improvável – de se restaurar certo espírito natural da poesia. Também já não é o fabricante de mundos com os resquícios de outros; é o irrequieto que não está em contentamento (o que não invalida os que assim são) com o mundo.

A voz poética de Nenhum mistério se não é a capaz do spleen original – porque já “Não se fazem mais lembranças / como as de antigamente. / Agora a memória apenas acumula indiferente // o que logrou atrair / a atenção por um instante / e amarra tudo com o mesmo indefectível barbante // e o joga numa gaveta / cronicamente emperrada, / a qual será só será aberta na hora errada” – aparece então em qual estado? O próprio tom do poema integralmente copiado aqui esclarece a pergunta: é a de um errante – não no sentido do transeunte, mas no sentido do que erra quando traz à tona suas maneiras de dizer as coisas; a voz de um desencontrado, i.e., a mesma de sempre, do poeta à margem, e outra, a do que propositalmente erra para não se ajustar. Noutro poema, o que abre este livro e que nos recorda outra vez Elizabeth Bishop, “Nenhuma arte”, se diz: “(Rememorar o que não foi não dá / em nada. É como enxergar um começo / no que não pode ser senão o fim. / Ontem foi ontem. Amanhã não há. / Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)” Isso num poema cujo primeiro verso arremata de alguma maneira Fernando Pessoa: “Os deus do acaso dão, a quem nada / lhes pediu, o que dia levam embora; / e se não foi pedida a coisa dada / não cabe se queixar da perda agora.



Num passado remoto, entidade em contato com o inefável; agora, o poeta deste tempo dos despropósitos é ora um apartado ora o que estabelece presenças na supressão de ausências: “Tempo agora perdido / (todo tempo se perde / vivo só nos vestígios) // que resistem por leves / (tudo que pesa afunda) / no mais raso da pele // onde o que foi desejo / (tudo que fica dói) / até hoje lateja” – descobre-se no poema depois de “Nenhuma arte”. A voz tomada ora por certa melancolia sobre o irrecuperável ou irreconciliável predomina e acentua o que no título se expressa – a ausência de mistério. Por sua vez, o tema não se constitui numa negação plena acerca do mistério e, sim, aquilo que dizíamos uma reafirmação do quanto, mesmo as coisas destituídas de mistério – essas que o poeta recolhe nos seus poemas – estão tomadas por uma natureza a que ninguém tem acesso. Quer dizer é uma negação que esbarra nos limites dela mesma. Em “Da metafísica”, um poema colocado já quase na saída do livro, o poeta assim arremata: “Ser parte de alguém ou algo / tão grande que não se entenda: / toda crença, ao fim e ao cabo, / se resume a essa lenda – // o mais rematado dislate, / coisa jamais entendida, / que eleva ao sumo quilate / o caco mais reles da vida.” Esse lado a que nunca acedemos e que a poesia toca, o inexprimível, contorna a compreensão de que Nenhum mistério é afirmação de que o mistério é força que envolve todos os seres e isso não deve ser tomado como mistério. Paulo Henriques Britto pratica, assim, o melhor dos gestos em poesia: o paradoxo.

Assim, o que se propõe é o que se oferece como uma teoria em “Uma nova teoria de tudo”; notem como o poeta incorpora o uso do discurso determinante deste mundo justificado em sua plenitude pelo apanágio da ciência e da razão para ironicamente negá-lo ao revelar o de dentro de sua engrenagem e como neste poema se apresenta o que afirmamos acima:

Todas as coisas que existem no mundo
fazem sentido. Senão não teria
sentido elas serem. Ou estarem. Tudo
mais depende desse princípio. Os dias

vêm antes das noites, não depois. Nunca
faz parte de sempre, assim como o zero
é apenas um número entre outros números.
Toda forma é perfeita: não só a esfera,

que é só mais redonda que as outras – nada
de mais. E todas as proposições
são verdadeiras – se tornam verdade

no instante exato em que são formuladas.
Ficam sem efeito as contradições
todas. (Pronto. Creia. Não faça alarde.)

No mais, o que nos agarra a esta vida é o mistério de viver e o que não nos enterra de uma vez é a contínua aprendizagem desenvolvida desde criança de tornar o mistério aparência; nesta ordem, apenas os poetas não vencem a etapa de conformação com mesmidade das coisas: “dou sempre um jeito de achar um problema”, diz o poema “Glosa sobre um mote de Sérgio Sampaio”; “Só me interessa o que não compreendo, / só amo o que não sei e não se explica” – adianta no mesmo conjunto de versos, avançando, diria uns, contraditoriamente no intervalo de uma celebração insubmissa ao que se oculta. Bem sabemos que as vias de todo poeta nunca são retilíneas, o que significa dizer que tais indícios e outros que se acumulam em Nenhum mistério não é o que parece à primeira leitura. É que às vezes negar – em português – nem sempre quer dizer o que racionalmente se espera da atitude. No caso deste livro se apresenta como uma alternativa de tornar o dessentido em matéria de poesia, um claro exercício de pura transfiguração esperado de todo gesto poético. É claro que o poeta não deve se ajustar à ordem comum das coisas, mas deve perceber que sua emancipação não pode suplantar a atitude que melhor o define (e por consequência também nós os leitores): interrogar-se. Interrogar não é nenhum mistério.

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