Os melhores de 2020: cinema



― Paterson, de Jim Jarmusch
Parece então que Paterson cobrar do seu espectador uma modificação dos sentidos para alcançar esse tempo outro que se perde na pressa do dia. A poesia nunca é mediada pelo tempo do relógio, mas não é puramente efeito contemplativo, tampouco superior ao rotineiro ou preso a uma dinâmica da qual tenhamos que abdicar do que somos. Essas qualidades, o filme parece inquirir, somam-se às vivências dos aspirantes à criação mas incapazes dela, tarefa que sobra na narrativa para os idealistas como companheira de Paterson. Leia mais aqui.

― Suk Suk, de Ray Yeung
A grandiosidade desse filme reside em parte no trabalho de equilíbrio entre as várias frentes assumidas pela narrativa. Todas as entregas passionais são determinadas pelo mesmo tom soturno que conduz os dois amantes. Para uns, isso pode se parecer uma integração aos modelos vigentes, mas não é. Retratar os sutis movimentos situados no bulício do mundo não é uma das tarefas mais fáceis. Requer certa maturidade ― a mesma que orienta os amantes nas suas escolhas. Silenciosamente, isso não deixa de ser dissidência. Ou melhor, é a raiz da dissidência. Os que depois usufruem da conquista dos do passado, certamente não lembrarão ou se lembrarão com desdém. Ray Yeung parece oferecer a justa medida do velho na ordem social ― não é a do refugo, não é a da margem, é a de quem abre caminhos para que as gerações posteriores possam usufruir do que as gerações passadas foram privadas. Leia mais aqui.

― Jojo Rabbit, de Taika Waititi
A narrativa fílmica bebe de um caldo rico de referências; se oferece, assim, não apenas como sátira da história, mas dos filmes constituídos por seu imaginário como as sugestões aos melodramas O menino do pijama listrado ou A garota que roubava livros. O Hitler vivido pelo próprio diretor é talvez o exemplo mais claro disso: vemos os traços do Hitler de Bruno Ganz em A queda! As últimas horas de Hitler e a cena que se tornou viral de quando Steiner falha nas suas ordens; do ditador construído por Charlie Chaplin. As homenagens ainda se expandem fora da força do rebaixamento. É o que parece sugerir o não crescimento físico de Jojo, o que além de ressaltar o interesse da narrativa em sublinhar que o crescimento aqui é o outro e ao mesmo tempo nos remete a O tambor, de Volker Schlöndorff. No mais, ao citar O grande ditador, logo percebemos que este é um filme que amplia a breve lista da tradição cinematográfica do riso em torno do nazismo nascida com Ser ou não ser, de Ernst Lubitsch, ainda quando Hitler estava vivo. Leia mais aqui.



Pacarrete, de Allan Deberton
O que Pacarrete também encena são esses minutos finais de uma existência. O tema da morte não vigora apenas na presença da peça de Fokine. Move-se em sentido variado nas múltiplas frentes da narrativa: desde o sentido biológico, da decrepitude dos corpos (outro tema evidenciado em passagens excepcionais da peça fílmica) ao sentido simbólico, quando toda uma consciência perece pelo esquecimento do outro. É nessa dupla direção que se move a vida de Pacarrete e com ela se modelam narrativamente todos os sentidos do balé no filme: da resistência ao longo silêncio da personagem atestando sua entrega sem grandes questionamentos. A constatação que nos deixa aturdidos é a da consciência da vida como perda ― outra condição continuamente reparada pela arte. Leia mais aqui.
 
O farol, de Robert Eggers
Esta é uma peça inesgotável. Se formos lê-lo com atenção das várias releituras, reparando aspectos dos mais sutis, não deixaremos de ampliar ao infinito a lista dos objetos culturais que participação na formação dessa obra. Produto exclusivo da imaginação criativa, é um desses artefatos da atual civilização que nos coloca, homem e comunidade, em interrogação sobre nós mesmos. Tudo isso forma o teor de uma obra clássica. Por isso mesmo, um filme que nasceu clássico. Leia mais aqui.
 
Você não estava aqui, de Ken Loach
Podemos designar este filme como uma ficção semidocumental, já que os registros embora ficcionais são recuperados em sua inteireza realista. Até mesmo seu princípio é realista; ainda que queira revelar o lado oposto da ideologia ou aquilo que deixamos de ver, às vezes porque sequer ousamos perguntar sobre o avesso das coisas, se trata de uma obra sem quaisquer interesses numa transformação dos costumes. Não é um filme que reafirme modelos, mas que se coloca sempre pelo princípio da inquietação. Eu, Daniel Blake – outro trabalho de Loach – se nos inquietava deixava por nos convencer sobre algumas circunstâncias vividas pelo protagonista, o que parecia, por vezes, estarmos numa narrativa centrada no absurdismo e não na crítica de como sistemas e máquinas apagam as relações humanas – no filme de agora esse efeito, inquietar, é mais bem conseguido. Somos convencidos à medida que nos aprofundamos nas vidas desses protagonistas ao ponto de passarmos a enxergar o papel desastroso desse modelo social vigente Sim, é preciso dizer que, por traz de tudo o que se mostra paira uma denúncia de um sistema de consumo pautado exclusivamente no excesso e no acúmulo. A grande lição deixada parece ser um apelo à retomada da vida antes de tudo isso (ou se não uma tentativa de redimensionar as prioridades que sorrateiramente os sistemas nos induzem); poderá parecer certa nesga de saudosismo, mas não é: é a constatação fatalista de que, daqui para adiante, as relações humanas estão fadadas ao total esgarçamento. E contra isso, parece que ainda não há qualquer luz no fim do túnel. Leia mais aqui.
 
Guerra fria, de Pawel Pawlikowski
Este é um filme belíssimo. As constantes invasões musicais, sempre atentas à paixão com a qual os artistas depositam nas atividades que desempenham, o que nos induz para uma verdade do sentimento, estão entre seu ponto-alto. Mas, há a fotografia em preto-e-branco, a maneira sutil de dizer as coisas e a construção muito detalhada de todas as situações que completam a experiência artística deste filme que, sem esses atributos, cairia na mesmice e seria apenas mais uma longa e tediosa história de amor. Reafirma-se a sensibilidade para o equilíbrio, tudo aquilo que pareceu desnecessário às artes do período evocado pela cena fílmica. Leia mais aqui.
 
O ano da morte de Ricardo Reis, de João Botelho
Visualmente, o filme de João Botelho é bem-cuidado. Chama atenção para a fotografia preto-e-branco, que não é apenas uma visitação (outra vez a metalinguagem) do cinema às suas expressões originais, reparadas estas também na maneira como a peça foi estruturada, obedecendo a organização em quadros. A escolha da fotografia cumpre sentidos de mais variada ordem: consegue sintetizar a cena para a consciência explorada, a de Ricardo Reis, ou para o embate dela consigo e com seu outro, Fernando Pessoa; fundamenta a atmosfera fantasmal dominante ― captura original da leitura de um romance com narrativa no mesmo estamento; e permite experimentarmos, com o rigoroso inverno, o universo opressivo ou em fechamento vivido no contexto evocado, algo que o leitor da obra de José Saramago consegue capturar neste romance e noutros, como Claraboia. Mesmo nas pequenas aberturas de claridade, que apontaria qualquer coisa de júbilo ― como na representativa cena que apresenta Marcenda ante um milagre pela cura da mão paralítica na Cova da Iria ― esta é dada num excesso ofuscante, reafirmando um estágio de alienação das consciências, espécie de cegueira branca para pensar noutro importante romance do escritor português. Marcenda, a jovem de memória prodigiosa, filha de um notável de Coimbra, é o segundo amor de Reis, o de feição platônica, pela natureza idealista que o reveste. Leia mais aqui.



Matthias e Maxime, de Xavier Dolan
Tudo nesta narrativa aparece na justa medida e equilíbrio, o que não é coisa simples, já que tudo poderia se deixar levar por aquilo que o espectador facilmente encontrará noutros dramas, seja o melodrama da impossibilidade do amor, da autoaceitação, dos interstícios que impedem as liberdades individuais, enfim, essas possibilidades tratadas vigorosamente pelo cinema nas últimas décadas. É possível que Matthias e Maxime seja tudo isso, mas não é da maneira como se foi mostrada e vista. Leia mais aqui.

A Herdade, de Tiago Guedes
“O filme começa com a ideia de que tudo acaba, de que tudo é finito. E que na sua finitude deparamo-nos com situações-limite e com a continuidade da vida dos que ficam. É nesse sentido que nos encaminham as primeiras cenas ―ao pragmatismo da forma como o pai de João lida com a finitude da vida, com a morte, com o eterno devir antes de o relógio fixar os ponteiros num tempo paralisante. O que não quer dizer que as pessoas não sintam ou não tenham sentimentos. Pelo contrário. Há coisas que reservamos no nosso interior para permanecerem num reduto inviolável que a especulação alheia não atinge. Assim nos pareceu o pai de João – um pragmático que jamais expressaria a sua vulnerabilidade ante o ato do filho na árvore simbólica da morte. A herdade não acaba. Persiste no tempo e vai passando, de geração em geração, para alguém da família que a administre. Por ora era a vez de João, que assume as vestes de personagem principal”. (Maria Vaz) Leia mais aqui.
 

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