17 livros de 2020 na opinião dos nossos colunistas

Ilustração: Ilya Milstein



Minhas melhores leituras de 2020

Por Guilherme Mazzafera 
 
 
– The History of The Hobbit, de John D. Rateliff (HarperCollins)
Um estudo exemplar e definitivo, em seu entremeio de filologia e crítica literária, sobre as origens, a composição textual e o alcance estético de um clássico já muito devassado.
 
– Viagem com um burro pelas Cevenas, de Robert Louis Stevenson (Tradução de Cristian Clemente, Carambaia)
Dos mais divertidos, sinceros e pungentes relatos de viagem já escritos, mesclando a verve de um ensaísta e conteur nato com o indevassável de uma das personagens não humanas mais inesquecíveis da literatura, a jumentinha Modestine.
 
– O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk (Tradução de Hildegard Feist; Companhia das Letras)
Uma verdadeira poética da forma, destilada com vagar e profundidade por um de seus mais notáveis praticantes.
 
Esta vida: poemas escolhidas, de Raymond Carver (Tradução de Cide Piquet, Editora 34)
O Manuel Bandeira dos EUA, cuja simplicidade esmeradamente construída alça voo ainda mais largo em verso.
 
Reflexão como resistência. Homenagem a Alfredo Bosi (Organização de Augusto Massi, Murilo Marcondes de Moura, Marcus Mazzari e Erwin Torralbo Gimenez; Companhia das Letras /Sesc)
Uma justa e farta homenagem a um dos mais importantes críticos e professores de nossas letras.
 
A aranha negra, de Jeremias Gotthelf (Tradução de Marcus Mazzari, Editora 34)
Daquelas histórias que não mais se escrevem, ideal para se ouvir ao pé do fogo em um ano pandêmico.
 
Graphs, Maps, Tress. Abstract Models for Literary History, de Franco Moretti (Verso)
Os possíveis caminhos da crítica literária amplificada pela computação e pelos métodos das hard sciences, da pena de um dos mais instigantes críticos vivos.
 
Poesia + (1985-2019), de Edimilson de Almeida Pereira (Editora 34)
Uma antologia de peso de um dos mais prolíficos e notáveis poetas brasileiros das últimas décadas.
 
João & Maria: dúplice coroa de sonetos fúnebres, de Leonardo Antunes (Patuá)
Uma pequena joia que revitaliza a coroa de sonetos, elevando-a ao trágico cotidiano.
 
The Craft of Fiction, de Percy Lubbock (Viking Press)
Um clássico esquecido que se dispõe a encarar o romance como arte, desvelando com esmero seus mecanismos construtivos.
 

As melhores leituras de 2020 (sem qualquer ordem particular)

Por Pedro Belo Clara


Felicity, de Mary Oliver.
Uma autora norte-americana, vencedora de um Pulitzer, que tarda em ter a sua obra traduzida para português. Este livro em particular é o último de originais que a célebre poetisa publicou. Decorria o ano de 2015, ainda quatro anos antes da sua morte. De linguagem leve e subtil, pleno duma luminosidade muito própria, cada poema amiúde ergue-se como uma sentida celebração do mundo e dos seus fenómenos, sendo que o principal destaque é dado, como lhe é usual, aos animais e à natureza em geral. Ainda assim, elevando sempre a vida e suas manifestações a patamares cintilantes, deparamo-nos com certas reflexões sobre o quotidiano e o comportamento humano, seja na relação mais íntima como na mais banal, num discurso poético entremeado por uma ironia inteligentemente refinada. Um livro interessantíssimo para quem se atrai por tais temáticas, nascido de um olhar atento e de um coração aberto ao mundo, executado com leveza e rigor – combinação de frágil equilíbrio, tão árdua de se conjugar habilmente.

Uma Noite de Insónia, de Wislawa Szymborska. (Antologia organizada por Teresa F. Swiatkiewicz.)
Uma louvável iniciativa da Manufactura, que decidiu reunir em edição bilingue os poemas de índole ecológica escritos pela famosa autora polaca. O volume é breve, mas intenso, combinando em grande harmonia a arte escrita e a arte desenhada. Sobre os poemas em si, observamos uma activa defesa dos direitos e da dignidade dos animais por meio da denúncia do Homem, mais concretamente o modo como este sempre os tratou, deixando implícita uma crítica à sua soberba enquanto ser que se julga dono de um palco no qual também participa. Uma obra que permite, assim de modo condensado, conhecer uma outra faceta da poetisa laureada com o Nobel em 1996, talvez uma que amiúde tende a ficar esquecida no imaginário dos seus leitores ou nas apreciações dos seus críticos mais habituais.
 
Entre Céu e Terra, de Du Fu. (Versões de Manuel Silva-Terra.)
Uma edição da Licorne, que já brindou o leitor português, na sua colecção, com outros trabalhos de poetas chineses de tempos remotos. A montra deste volume, apesar de relativamente breve, é variada e permite sem qualquer sensação de falha ou escassez entrar profundamente no universo deste talentoso poeta que viveu no século VIII da nossa era, no seio de um período bastante conturbado politicamente. Quanto à obra que deixou, versando sobre a vida na corte, as crises políticas, as amizades, a natureza, o isolamento e a pobreza, a crítica tem sido unânime: um dos maiores que a China já conheceu.

Memórias De Um Gato Viajante, de Hiro Arikawa.
Um romance enternecedor que tem tido um sucesso assinalável um pouco por todo o mundo, para espanto da sua autora. A obra tem a particularidade de inverter as posições de um tema algo recorrente: a relação dos animais com os Homens, no caso um gato de rua e o rapaz que o adopta. O mesmo é dizer: embora os capítulos alternem de narrador, onde o próprio gato também tem a sua vez, todo o enredo leva-nos mais para o contacto com os sentimentos do animal do que propriamente do seu amigo humano. Afinal, os Homens tendem a viver mais tempo, a reunir mais vivências, até a partilhar a vida com mais animais ao longo das suas existências. Mas para o que para aqui importa, basta saber que juntos irão realizar uma viagem por quase todo o Japão, por pontos importantes na história de vida do seu dono, que oculta um segredo difícil de contar. É um trabalho muito bem conseguido, de grande sensibilidade e beleza, que tanto nos oferece gargalhadas como nos comove no seu final – embora se vá tornando óbvio, página a página – ; um livro de sentimentos, de memória e de relações. Em suma, um livro de vida.

Poemas de Bai Juyi. (Selecção e tradução de António Graça de Abreu.)
Uma excelente edição levada a cabo pelo Instituto Cultural de Macau em 1991, apresentando com grande propriedade ao leitor português um dos maiores poetas chineses de sempre. Pessoalmente, apenas conhecia os seus trabalhos de antologias ou das versões inglesas, que efectivamente são variadas – e das quais tantas vezes me servi nas traduções que já realizei. Assim, compreender-se-á como a descoberta deste volume, composto por alguém bastante competente na matéria, foi uma daquelas pequenas grandes coisas capazes de despertar um sorriso no coração de quem estima tal literatura. Bai Juyi desempenhou papéis políticos de renome, mas nunca virou as costas aos mais necessitados. Um poeta, assim, bastante crítico do seu tempo. O trabalho que deixou, pautado por tal característica, recebeu influências das filosofias budistas e confucianas, pelo que não se estranha o isolamento em que mergulhou nos últimos anos de vida, em comunhão com a simplicidade do mundo natural. Conta a lenda que tinha a particularidade de ler os seus poemas à sua cozinheira, gente do povo, sem qualquer instrução, e de pronto os rasgar se estes não fossem pela sua ouvinte devidamente compreendidos. Prova, portanto, da sua intenção em produzir uma poesia simples e directa – desejo ao qual estas traduções são seguramente fiéis.

I Heard God Laughing – Poemas de Hafiz. (Selecção e tradução por Daniel Ladinsky.)
Mais um autor que, infelizmente, tarda em aparecer traduzido para português. Hafiz é dos maiores poetas místicos que a humanidade já conheceu. De origem persa, terá certamente sido aquilo a que no oriente chamam de “homem iluminado”. Os seus poemas destacam-se pelo humor, leveza e profundidade das suas mensagens, auxiliando os leitores a mergulhar em si mesmos e a reconhecer a verdade que os habita. A obra é uma mera antologia, e muito breve até, mas oferece com propriedade o principal da luminosa sabedoria de um peculiar poeta do século XIV, ainda hoje muito amado no Irão.

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.
Deixo para o fim o revisitar dum dos maiores clássicos do universo da ficção científica. Obra de cariz distópico, tem atravessado e marcado gerações. Impressionando desde logo pela actualidade da sua mensagem, constitui acima de tudo um aviso sério aos nossos comportamentos como uma sociedade cada vez mais entregue aos devaneios das suas próprias distrações, um veneno capaz de adormecer a humanidade latente em cada um de nós. (No tempo em que foi escrita, veja-se, as redes sociais não passavam duma mera miragem.) Centrada num tempo futuro onde, imagine-se, os livros são proibidos, deixa-nos com diversas questões que qualquer cidadão preocupado e comprometido com o desejo dum futuro mais luminoso deverá de boamente considerar. Assim sendo, dir-se-á um título indispensável em qualquer biblioteca.
 
 

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