Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.





Nascido em São Luís, Maranhão, em 10 de setembro de 1930 e registrado como José Ribamar Ferreira, Ferreira Gullar fez sua estreia na poesia em 1949 com um livro publicado com seus próprios recursos e apoio do Centro Cultural Gonçalves Dias: Um Pouco Acima do Chão. Note: o nascente poeta contava então com dezenove anos. Mais tarde, já formado poeta, escolheria deixar de fora este título da sua obra completa. É notável a recusa. A poesia era profundamente marcada pelas influências do simbolismo, algo dissonante da poética praticada mais tarde.

Assim, os feitos de Gullar no Maranhão foram breves, mesmo que toda sua formação tenha se passado e se constituído nesse período. As coisas tomam outro rumo, depois de largar seu emprego como radialista, mas não as pretensões poéticas, em embarcar, em 1951, para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como jornalista.

As experimentações gráficas contidas no seu livro A Luta Corporal (1954) motivaram sua aproximação com os poetas paulistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, que lançariam mais tarde o movimento da Poesia Concreta (1956). Inicialmente, Gullar participou do movimento, mas afastou-se em 1959 para criar o grupo Neoconcretista.

No início dos anos 1960, o poeta dedica sua poesia mais a temas sociais e ao engajamento político. Como frutos dessa virada, ele escreve os poemas de cordel João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer e Quem Matou Aparecida?. Em 1964, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1971, com o recrudescimento da Ditadura Militar, partiu para o exílio (Rússia, Chile e Argentina), de onde retornou seis anos depois. 

E foi na sua estadia na Argentina, longe de tudo e entregue à própria sorte dos vis tempos de horrores, que Ferreira Gullar escreveu a mais singular de sua obra, o Poema Sujo, livro lançado em 1976. Levou alguns a concepção desse texto; primeiro algumas fitas cassetes com a voz do próprio poeta diziam passagens do poema. Isso terá durado três antes até a chegada do livro.

Na opinião de alguns críticos, Ferreira Gullar é uma das vozes mais expressivas da poesia brasileira. Um traço forte de sua obra é a alta taxa de vida imediata que se pode encontrar em seus versos. E, claro, isso não se refere apenas ao trabalho mais marcadamente engajado. Mas também em poemas como "Meu pai".

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

As modulações variam. Vão desde a suavidade nostálgica e ingênua de "Cantiga para não morrer" até as reflexões maduras contidas em "Aprendizado" e em "Os mortos".

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abra-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.


Aprendizado

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.


Os mortos

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça

Em "Traduzir-se", o poeta se define: "Uma parte de mim / é só vertigem: / outra parte, / linguagem." No caso de Ferreira Gullar, a linguagem transcende o horizonte da palavra. O poeta ainda fez incursões pela pintura, pela crítica de arte, ofícios que chamou de seu lado B. 

Eleito em 2014 para a Academia Brasileira de Letras, colecionou uma vasta lista de prêmios: em 2007, seu livro Resmungos ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Ficção do ano; em 2010, foi agraciado com o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da Comunidade de Países de Língua Portuguesa; e, um ano depois, voltou a ganhar o Prêmio Jabuti com o livro de poesia Em Alguma Parte Alguma, um de seus últimos trabalhos publicados em vida.

Ferreira Gullar morreu no dia 4 de dezembro de 2016. 


* Última atualização em 04 de dezembro de 2016.


Comentários

Cleber Benvindo disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Cleber Benvindo disse…
Escrevi um comentário anterior, mas por força da internet, perdi o que havia escrito, olha que não era pouco, mas mesmo assim tentarei ser conciso...Pedro Parabens por falar tão bem de um poeta tão maravilhoso (acho muito dificil encontrar a melhor palavra) como Ferreira Gullar, sim por que para mim ele é o mais importante expoente da poesia nos dias de hoje depois de Drummond...Bem foi muito bom conhecer melhor e mais sobre Gullar...
Mas quero também dar destaque a um dos poemas sociais mais importantes de sua obra, que nos leva a pensar, questionar tudo o que está a nossa volta, se trata do poema O AÇUCAR.
Anônimo disse…
Meu poeta favorito!

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574

Dalton por Dalton