Sobre O encantamento

Por Hermann Broch




Sem nenhuma dúvida, um fato que responde à psicologia de massa pode ser expresso vividamente recorrendo a uma “descrição objetiva”. Pode-se descrever o vestimenta de um flagelador ou os gritos numa partida de futebol, ou a multidão reunida em frente ao Palácio da Chancelaria de cuja sacada ressoa a voz peculiar de Hitler, e também se pode descrever de uma forma muito nítida os horrores do pogrom; mas todas essas descrições – mesmo quando têm um plano de fundo histórico – de certa forma não passam de declarações vazias. Tudo o que dizem é que existem ações que respondem à psicologia de massa, mas nada dizem sobre sua verdadeira função e seus efeitos.

Para saber algo mais que isso, é preciso investigar a alma do indivíduo, perguntar por que e de que como se fica à mercê desse fenômeno incompreensível que chamamos de “psicologia de massa”, sim, precisamente a dificuldade para entendê-lo é o que nos move a levantar tais questões. A psicologia de massa torna o indivíduo sozinho disposto a aceitar como verdade as mentiras mais grosseiras, e homens de grande sensibilidade e autocrítica podem ser seduzidos pelas situações mais improváveis; com ela irrompem tendências arcaicas que se acreditavam terem sido há muito perdidas no abismo dos tempos e, em meio de toda racionalidade, começa a se formar um pensamento mítico. E somente a alma individual, a que se converte em presa dessas coisas incompreensíveis, pode explicar algo sobre isso.

Também não faz sentido falar “inteligentemente” sobre as coisas. Para escrever um ensaio, não se necessita de nenhuma poesia e os temas que se enquadram no escopo da ciência são os menos indicados para abordá-los como um romance; isso é em parte blasfêmia e, em parte, diletantismo. Os temas da poesia são “eternos”: são as situações básicas do homem ao nascer, crescer, comer, dormir, compreender, amar e morrer; a figura que corresponde à verdadeira poesia é o “Jedermann” (todo homem) e, para isso, toda verdadeira poesia cria modelos humanos.

Tentei abordar minha questão-problema, esta “condição que responde pelo nome psicologia de massa”, a partir das duas perspectivas mencionadas acima. Mudei o palco para uma solitária cidade nas montanhas – cujo afastamento é possível descrever usando os traços mais simples – e coloquei essa busca da alma individual dentro da estrutura do diário de um médico da aldeia. O diário é a maneira mais simples e honesta de refletir um fato psicológico; e como os camponeses não escrevem diários, tive que colocar essa tarefa nas mãos de um intelectual, e fiz isso deliberadamente, porque quando se trata de alguém de quem se pode esperar uma capacidade absoluta de crítica e autocrítica; surpreende muito quando essa capacidade é finalmente derrotada pela psicologia de massa que triunfa sobre ela.

A fábula é extremamente simples: chega a este povoado primitivo um forasteiro; ele não desperta simpatia entre as pessoas, pelo contrário, provoca rejeição e parece ridículo, especialmente porque ele começa a se mostrar como um possuído extravagante que tenta impor suas ideias místicas – ou melhor, pseudomísticas – sobre a santidade da terra, a submissão à montanha etc., e isso incomoda as pessoas. Mas, pouco a pouco vai ganhando adeptos, primeiro entre os jovens, depois entre os adultos e, finalmente, enfeitiça toda a cidade.

As coisas vão adquirindo uma dimensão cada vez mais louca, embora, a propósito, os motivos pareçam cada vez mais sensatos. Começa-se a acreditar no mais incrível, surgem as visões pagãs e mitológicas, todos os instintos sádicos são liberados, até que no final, numa espécie de celebração sacrificial pagã que desmantela uma festa de consagração da igreja, a contrafigura do intruso, uma velha e sábia mulher que encarna a bondade da humanidade, torna-se vítima da fúria desencadeada: é como se a sociedade materna fosse destruída novamente. Após esse ponto-limite, a sociedade volta ao processo civilizatório; até o louco, que conseguiu dominar o povo, volta a integrar-se na vida cotidiana; mas o humano foi perdido para sempre.

O médico participa de todos esses eventos e os narra. Sem perceber, ele, que inicialmente tinha uma visão mais fria e crítica do louco do que qualquer outro, também é levado pelo delírio. E, sem perceber o que aconteceu, o diário também finalmente retorna à vida cotidiana. Seu autor considera que nada mudou nele, que ele é o mesmo de quando começou a escrever o diário.

Faz parte da essência de toda poesia enfatizada entre duas épocas culturais ser partícipe na busca religiosa faz; talvez essa seja sua prerrogativa mais bonita. Sempre que a poesia se aproxima do religioso, apela a visões mitológicas; isso acontece naturalmente, mesmo que não seja essa a intenção. Numerosos exemplos contemporâneos podem ser citados, por exemplo, a mitologia bíblica de Mann, o grego em Ulisses de Joyce, o pagão em Giono; nesses casos, não é algo casual, mas uma necessidade. E tão necessário, naturalmente necessário, foi neste livro a virada para o mitológico.

Surgiu de interior de seu próprio tema. Faz parte da essência desta época substituir o declínio da religião por um culto à natureza que se torna quase frenético; essa mudança responde a motivações higiênicas, esportivas e de outro tipo, mas obviamente também responde a razões muito mais profundas, isto é, a razões metafísicas.

Investiguei essas motivações sempre prestando atenção, no diário do médico, à coincidência entre a paisagem interior e a exterior, àquela inter-relação que existe constantemente entre a paisagem da alma e o cenário exterior. E se alguém prestar atenção a essa relação que se apresenta de modo mais ou menos claro entre os homens, logo descobrirá como estão suscetíveis a fazer entrar na alma as visões mitológicas. E, como é indubitavelmente assim, devemos ver nessa disposição constante em relação à natureza e ao mito uma das razões que tornam esses tempos uma época com tanta predisposição aos fenômenos marcados pela psicologia de massa.

*

Entre 1928 e 1935, publiquei meus romances e uma peça que subiu ao palco em Zurique em 1934. Todos esses trabalhos fazem parte da linha dessas duas perspectivas a que me referi anteriormente; em todos eles, procurei obter um efeito exotérico por meio de recursos poéticos. Isso é válido especialmente para o meu romance O encantamento, que comecei a escrever em 1935, mas que, como resultado dos eventos daquela época, não cheguei a concluir então (consegui salvar o manuscrito e levá-los para os Estados Unidos). Neste romance tentei revelar as raízes dos eventos que ocorreram na Alemanha, com todo seu plano de fundo de elementos mágicos e míticos, com todas suas pulsões de delírio em massa, com sua “sóbria cegueira e sóbrio estado de embriaguez”. Não pretendia pintar os eventos tais como ocorreram, mas encontrar a forma poética mais simples que expressasse o verdadeiramente humano que surge das profundezas da alma e seu vínculo com a natureza. Minha esperança era alcançar o efeito didático da poesia ética.

* Hermann Broch escreveu esse ensaio na primavera de 1940. O comentário em destaque corresponde a um parágrafo sem título incluído no capítulo “Literarische Tätigkeit (1928-1936)” [“Atividade literária 1928-1936”, trad. livre] da Autobiography als Arbeitsprogramm (Autobiografia como programa de trabalho) que Broch escreveu em 1941.



Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Boletim Letras 360º #613

Dalton Trevisan

Boletim Letras 360º #603

Boletim Letras 360º #612

O centauro no jardim, de Moacyr Scliar