Eu hei-de amar uma pedra, de António Lobo Antunes

Por Pedro Fernandes

António Lobo Antunes. Foto: Leonardo Cendamo.


 
António Lobo Antunes é autor de uma literatura rizomática. Cada romance seu é metonímia para o todo de sua obra, visto que, desponta como um pequeno filamento de um mesmo caule. Na filosofia pós-estruturalista o rizomático — termo derivado da imagem biológica do rizoma, caule subterrâneo em forma de raiz que se estrutura por multiplicação de outros filamentos — se ilustra uma compreensão estrutural do saber, igualmente múltiplo e sem respeitar uma subordinação hierárquica ou diretriz determinada. Na apropriação feita para o nosso caso, a adjetivação se reveste com os dois conceitos inferidos.
 
No caso de Eu hei-de amar uma pedra, sua raiz é o episódio do reencontro de um homem com um amor da juventude que julgava desaparecido, o restabelecimento do enlace e a manutenção até à morte, guardado por uma sorte de acordo tácito dos amantes; dele deriva a variedade de episódios controlável apenas pela suspensão circunstancial que aviva ou questiona a história desse amor e se coloca, na maioria das vezes, como tentativa de revelação acerca da complexidade das relações adjacentes, quase sempre, associadas ao trato familiar, por aproximações, silêncios, intrigas e afastamentos.
 
Reside, portanto, uma compreensão básica segundo a qual toda narrativa se constitui da tessitura de outras narrativas, um procedimento difícil de precisar sua origem e seu fim porque indeterminável e interminável. Neste que é o décimo romance do escritor português, por exemplo, é impossível precisar o ponto original do enlace amoroso, da mesma maneira que não podemos determinar sobre as vidas da extensa galeria de figuras que circulam nos fluxos de narração, uma vez que, nunca alcançamos um ponto-limite sobre cada um dos brotos narrativos que irrompem aleatoriamente. No fim, toda ordem que alcançamos é puramente um possível, nunca a definitiva. Ou seja, a literatura de António Lobo Antunes simula magistralmente, como nenhuma outra, a representação como um possível e nos oferece uma compreensão sobre isso que continuamos apostar como completude enquanto ilusão sobretudo porque nela acreditamos como verdade.
 
Em Eu hei-de amar uma pedra o possível se organiza em quatro partes muito distintas, sem quaisquer interesses cronológicos: a primeira é constituída pelo conteúdo de dez fotografias do pequeno arquivo familiar herdado por este senhor-amante — cada foto sustenta um capítulo e em ordem diversa lida com as origens do protagonista e alguns dos dilemas ou episódios marcantes para o núcleo familiar; a segunda parte se organiza em torno de cinco consultas em que a paciente é a amante e um dos assuntos recorrentes circunda em torno da retomada do enlace amoroso mantido pelos encontros toda quarta-feira numa pensão situada na  Graça, num ou noutro dia de fim de semana de primavera em Sintra e nos encontros de casuais desconhecidos numa praia da Tavira no mês de férias.
 
Embora não sejam os registros de consulta o que constitui o ponto de interesse nesta segunda ocasião do romance e sim os encontros entre a paciente e o médico, queixosa de insônias, um ou outro mal-estar — favorecendo, mesmo um exercício de autoanálise não dela mas dele — essas duas primeiras partes da obra chamam atenção pela presença de certo conjunto documental a partir do qual um narrador / autor pode se interessar pelo deslindar do drama de suas figuras. A observação sobre esse tratamento é importante porque certas circunstâncias e mesmo as personagens são designadas, quando não por um episódio, característica ou designativo, por algum objeto, como se este fosse uma extensão nossa no mundo, capaz de evidenciar na ausência nossa presença, agindo como suporte de memória. É pelo crochê a fabricar indefinidamente um naperon, pela caixa de música com bailarina e o medalhão, por exemplo, que sabemos da mulher-amante; é a partir do vocativo Pimpolho, conseguido a partir da memória que salta de uma das fotografias, que sabemos um modo de tratamento carinhoso dado e associado ao homem-amante pelo fotógrafo dono do estúdio Photo Royal Ltda., de onde provém grande parte dos dez registros fotográficos que formam parte no arquivo da memória familiar e, por contrapartida, o tratamento depreciativo do pai do homem-amante que se refere ao filho sempre como Trambolho, um pai que abandona a família com destino a Paris e não devolve mais quaisquer rastros, deixando a mulher no enovelamento sobre qual é toda vez entrevisto pelo ponto de vista da criança, com o Primo Casimiro.
 
Ainda sobre os objetos, estes condensam um complexo de valores das figuras de seu convívio. Assim, a caixa de música com bailarina remonta o passado da mulher-amante; o namoro adolescente com Pimpolho, data de quando ela era estudante de balé. Por extensão, pode-se entrever a preservação da imagem em parte fabricada pela idealização amorosa, da beleza garça do corpo feminil, irretocável, outra vez rediviva imaginariamente no reencontro anos depois. Já o crochê oferece uma imagem contraposta à juventude; o tom senhorial se amplifica pelo traço do cuidado decorativo do naperon. Agora, embora sejam dois objetos de natureza totalmente diferentes, este continua a manifestar a ideia de enfeite desplegado da bailarina; e assim, ambos repisam uma imagem da amante: quem se traz em segredo e cujo ideal de beleza se contrapõe ao da mulher oficial.
 
Isso significa dizer que a literatura de António Lobo Antunes é também uma arte modelada pelo resquício. Por vezes, não se distinguem sujeito-coisa; um e outro se afetam mutuamente e transitam de suas formas. Em várias passagens mas principalmente nas do final do romance — em parte conduzido pela voz da mulher-amante no leito de morte — perdemos os limites sobre o que é a bailarina da caixa de música e quem é sua proprietária. Noutras vezes, os objetos ganham expressão, falam com seus proprietários. Este borrar de fronteiras reafirma uma recorrência que se nota na prosa antuniana desde os primeiros romances ainda mais ou menos fixados aos modelos tradicionais do fluxo de consciência e nas invasões de instante surrealista, quando o mundo só é possível se capturado pelo olho alucinado. Isso compõe uma camada por sobre a realidade imediata das coisas fazendo do romance nem transferência, nem cópia, mas criação de uma natureza de cores próprias.
 
É preciso dizer que é a partir do fragmento que se constitui toda a memória dos acontecimentos em Eu hei-de amar uma pedra. Um exemplo que podemos acrescentar aos vocativos que oferecem tratamento ao protagonista, é a repetição de soltas passagens de diálogos. A relação suspeita entre a mãe de Pimpolho com o Primo Casimiro é sempre reiterada pela fala “— Vais ficar a pensar nele toda a vida pequena?” Por essa pergunta o romance oferece o ponto de vista de rejeição do menino em relação ao possível atavio amoroso; apesar de ser Primo Casimiro quem demonstra algum esforço de cuidado para com a família abandonada (como atestam resquícios de fala da madrinha da mãe do Pimpolho), a criança recusa a admiti-lo no lugar do pai. Demonstra-o como um homem de persistência insidiosa. No contato que estabelece com um retrato feito no estúdio do Senhor Querubim essa figura se amplia para o homem de pequena confiança, pabuloso, visto que conta ter matado um leão numa de suas viagens a África e não uma zebra como se vê no retrato, ainda que mesmo isso seja clara parte de uma figuração de estúdio penosamente malfeita.



Chama atenção a ausência marcada textualmente do vocativo, o que além de reforçar a imprecisão da conversa — recordada, modificada ou mesmo inventada por quem recorda —, amplia os sentidos da expressão: “— Vais ficar a pensar nele toda a vida pequena?” Assim, pequena acaba por fazer as vezes de qualificativo para vida, reanimando ora a vida como extensão breve que não deve ser desperdiçada com os que não nos animam interesse ora ressaltando a diminuição da vida dessa mulher que parece se deixar levar por um sentido lutuoso estabelecido não pela morte, mas de uma sua forma: o abandono.
 
A terceira parte do romance é designada como “As visitas” e se organiza por três capítulos em que predominam a voz da filha da madrinha da mãe de Pimpolho. Criada para casa, apartada do mundo como uma mulher de pouca saúde, a costureira é levada a deixar sua morada no Jardim Constantino. Pimpolho toma posse da casa que continua aos olhos da sua esposa assombrada pelo barulho da máquina de costura. A antiga moradora do Jardim Constantino é internada por ele num lar, onde a visita com alguma frequência, talvez por algum remorso nessa atitude. Esta parte é, pelo ponto de impulso, a seção dos desafetos: da mãe pela filha; dela para com Pimpolho, entrevisto sempre com um interesseiro desde criança, quando, para vergonha da mãe, só se contenta com visita à casa do Jardim Constantino depois que sua proprietária lhe despacha a lata de biscoitos; e mesmo da cunhada do protagonista, uma figura problemática, afastada da família mais tarde e que possivelmente sabe o segredo do pai do genro e que vê no Pimpolho um homem mulherengo; da própria mulher que se queixa da distância com o marido, da amargura do casamento (evento referido na última parte do romance) que mais tarde abandona levando o marido assumir o caso com uma colega de trabalho, ocasião quando se inverte o tratamento amoroso.
 
Obviamente que as censuras não se organizam exclusivamente neste passo do romance. Se a literatura de António Lobo Antunes é rizomática, apoia-se numa poética do fragmento, também remonta à dispersão. Para noção disso, basta compreender que todo imbróglio narrativo de Eu hei-de amar uma pedra se organiza em torno dessa tentativa de contar uma história de amor conduzida em segredo, quase totalmente à sombra do estatuto social e da ordem familiar. Se isso é um segredo para quem poderia contar (ele porque omite, ela porque não se quer talvez perder o amor da vida), sobram então, especulações e estas constituem o todo do romance, misturando-se, claro, com os impasses e dilemas de cada um dos especuladores. Nesse carreio diz-se tudo, exceto o todo da história desse amor que se coloca apenas — e outra vez o termo já repetido — como um possível. O fim do romance, apenas uma abrupta interrupção dos vários fluxos de narrar pelas mãos um terceiro totalmente alheio aos protagonistas da narração é exemplar nesse sentido.
 
A última parte do romance — “As narrativas” — se organiza em sete capítulos assumidos, como no restante do fluxo narrativo, marcado vozes diversas, todas em tentativa de aproximação com o par amoroso: uma prostituta que atende na pensão da Glória, o ponto de encontro durante cinquenta anos entre os amantes; a dona da hospedaria e uma sua parenta; as filhas de Pimpolho; a mãe delas, nunca sabedora da vida de traições, uma vez que a morte do marido no quarto com a amante é encoberta pelo genro; e a própria amante que, no fim da vida, assume-se a voz oficial do que se narra, mas nem mesmo isso alcança confirmação. “As narrativas” formam, dessa maneira, por acumulação, em estratégias de armar a possível história de amor.
 
Parece interessante considerar que o amor — essa noção cultuada desde os antigos, elevada entre os românticos e desfeita entre os contemporâneos, entre eles incluindo a literatura antuniana, ainda que em nada destituída — só encontra realização na ausência. É ela o motivo para reatar o convívio estendido pelo restante da vida entre os amantes. Mesmo assim, são necessárias algumas ressalvas. Uma delas é que não cabe aqui a noção própria de realização, não só porque o romance em nada esclarece especificamente nesse sentido, mas o convívio (feito mais de apego) dos amantes parece se estabelecer como uma tentativa fracassada de recuperar todo um passado que ficou por viver. A outra é que não existem quaisquer arrebatamentos; nem os dois preferem deixar os destinos construídos pela reinauguração da aventura pelo idílio amoroso, ainda que desenvolvam qualquer coisa parecida ao manter esse secreto convívio.
 
O que este romance de alguma maneira testemunha a partir dessas tentativas de encontrar a história de resposta sobre o fracasso amoroso é outro dilema bastante caro à literatura de António Lobo Antunes: a incomunicabilidade ou as traições do dizer e outros impasses envolvidos no processo de se comunicar, circunstâncias que, impensadas, arrastam os sujeitos para vidas que não são as suas ou pelo menos não a reconhecem como suas. A ausência entre Pimpolho e a amante (que o leva a continuar a vida até ao ponto que se encontram quando se reencontram) é motivada pelo silêncio, uma vez que ela, reclusa num sanatório em Coimbra não responde às tentativas de contato dele. Ou seja, o rumo de cada um marca-se não somente pelas suas decisões, mas, pela impossibilidade de alcançar o que só imaginariamente constitui um rumo, afinal a vida parece ser errância desenvolvida sobre ausência.
 
Se atentarmos para os dilemas individuais das principais personagens de Eu hei-de amar uma pedra encontraremos a constante reelaboração desse impasse: nenhuma delas está conformada com seu destino. A insatisfação com o casamento e o lugar para onde vivem são apenas dois desajustes dos mais recorrentes. Mas nada aqui se ajusta; nem mesmo as fotografias que não mostram o que dizem mostrar. Por metástase, isso se infiltra no próprio tecido da narrativa que se coloca em expansão contínua, monstruosa, mas, propositalmente, sem conseguir alcançar dizer o que se espera dizer (se é que é possível alcançarmos esse instante), como se num infinito adiamento, até ser colocada em abrupta suspensão por uma voz alheia a tudo o que se conta ou se tenta contar. O curioso, é que a indizibilidade ou a impossibilidade do narrar está longe de ser problema; é sim a solução mais autêntica sobre o que o romance se propõe tematizar.
 
Qualquer romance de António Lobo Antunes é uma experiência singular e, claro está, irrepetível, mesmo que o leitor esteja familiarizado com os seus volteios e a movência dos fragmentos; é uma experiência que se oferece como uma sensível percepção sobre os nossos dramas desde o interior para o exterior, dos nossos desajustes individuais e coletivos. Ninguém faz isso com a sua maestria — também a mais vigorosa na história recente do romance.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #604

A vegetariana, de Han Kang

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Boletim Letras 360º #596