Michel Houellebecq e a felicidade

Por Marcos Abal 

Michel Houellebecq. Foto: Renaud Monfourny



Se Honoré de Balzac queria competir com o cartório em sua Comédia humana, uma obra que se destaca no século XIX pelo brilhantismo da mais variegada quantidade de personagens, Michel Houellebecq, em seu romance O mapa e o território, parece querer competir com um catálogo de loja de departamentos, visto que é uma obra de destacado brilhantismo no campo da literatura pós-moderna. Ficava bem a Don DeLillo, que se move como um verdadeiro poeta entre o lixo — exemplo disso é o magnífico Ruído branco. Há um afiado — e afinado — jogo com o DeLillo, além de todo aquele sopro de geleiras que nos é apresentado como uma metáfora para o medo da morte. É o ruído elétrico que não conseguimos parar de ouvir, assim como não conseguimos parar de ouvir o murmúrio da morte, como uma abstração que um dia se tornará carne dentro de nós.

A morte também está muito presente no romance de Houellebecq. Aliás, tudo está presente; é impossível pensar em alguma coisa que não esteja presente neste romance. Estão os grandes e os pequenos temas. A morte, a arte, o amor, o sexo, a paternidade, carros, a doença, a literatura, a cidade e, ocasionalmente, a paisagem bucólica adornada com esterco de vaca. E, na ausência de figurantes, há coisas com mais caráter do que personagens de carne e osso. Cada objeto tem sua própria psicologia, sua história mítica. 

Em Houellebecq, a obsessão por mercadorias com classe é, digamos, um novo modo de vida. Um estar na vida sonhando com “os sapatos Paraboot Marche, o dupla laptop-impressora Canon Libris e a parca Camel Legend”.¹ Na maioria das vezes, o discurso parece mais o de um publicitário grato a Deus por ter nascido entre tantas coisas bonitas oferecidas no Carrefour do que o de um romancista examinando a alma humana, se é mesmo isso a que dedicam os romancistas com suas frases. Claro, se não há alma humana para examinar, podemos sempre optar por estudar o manual de instruções de uma câmera de vídeo ou de uma Mercedes.

O grande tema, mais uma vez, é o dinheiro. Tê-lo ou não o ter, e tendo ou não, já víamos o drama e a ação de indivíduos do século XIX dentro de um romance. O dinheiro se comportava previsivelmente, como um senhor e mestre que dá e tira a vida; as fortunas pisoteiam qualquer linhagem, e a mudança de classe social era o jogo e o romance. Em O mapa e o território, o dinheiro é um mistério. 
Todo romance ostenta um mistério, e nesse caso, o dinheiro é um mistério como nenhum outro. É um deus caprichoso que aparece sem avisar. Ordena tudo, mas não está totalmente claro como ordena. Ninguém sabe, embora alguns menos que outros; há uma razão para a mão invisível ser invisível. O dinheiro se move pelo mundo como um bando de estorninhos imprevisível. Arte? A arte é um ramo, talvez o mais absurdo, desse grande e extravagante fluxo de dinheiro. O protagonista deste romance, também milionário, anseia pelo Tio Patinhas; talvez por seus banhos de moedas de ouro, por sua certeza em possuir simplesmente por possuir, por sua sabedoria feita do saber ser rico.

Toda essa sociologia do consumo e da publicidade circula pelo romance como uma introspecção dos protagonistas e ainda como uma alternativa ao tédio do nosso tempo, uma alternativa de preenchê-lo. O resultado é bastante pobre se comparado ao grande romance de Georges Perec que também lida com esse tema, As coisas. A influência deste romance, aliás, passa longe. A influência foi bastante perniciosa, na verdade, visto que as grandes obras expandem o mundo e destroem a criação literária das gerações subsequentes, ou pelo menos das imediatamente posteriores. A influência de Perec é muito forte, e daí surgiram todos aqueles leitores de manuais de instruções de eletrodomésticos. Outros, como William Faulkner e Marcel Proust, também criaram seus monstros, mas em menor grau, visto que o indivíduo tem sido um terreno mais fértil na literatura do que o homem médio ou o homem percentual da literatura sociológica. É preciso dizer que As coisas é deliciosamente escrito e possui a elementaridade que falta aos experimentos posteriores de Perec.

Como Perec, Houellebecq também aceita a sociedade de consumo (que insistência, que paixão) e contribui com seu grão de areia para a construção de uma mitologia que a sustente, como em todo caso do filho próximo, queira ou não. Mas a sua é uma mitologia da mitologia. Sua França é aquele país inventado pelos guias Michelin, como o artista do romance que fotografa os mapas Michelin e cria uma paisagem de território mapeado. Uma França de segunda mão e um mundo de segunda mão. Sua experiência é uma experiência de consumidor. É claro que Perec nos traz um mundo amarelo como flores secas, o pó do lixo de um passado que sempre enobrece, porque o velho tem a poesia quase invisível deixada pela passagem do tempo, um resíduo de nostalgia que de alguma forma humaniza o objeto. A obra de Houellebecq ainda cheira a novo, senão ao rançoso e podre (a obsessão com o escatológico é muito forte é muito coisa do nosso tempo).



Talvez todo esse retorno do autor à prateleira do supermercado seja mais uma tentativa de revisão do romance de Perec. É a mesma coisa, arte ou supermercado. A história da literatura também poderia ser a história de uma reescrita. Neste caso, uma sociologia em diálogo. Mas, felizmente, o romance de Houllebecq não para por nisso. É um romance que opina sobre tudo e explora todos os principais temas que ganham grandes prêmios, o Goncourt, por exemplo. Tudo e todos os gêneros são enfiados à força no romance, disfarçados de romance, perdidos em um romance. Com tropeços de Wikipédia, aparentemente, ou, pior em um romance, com prosa de Wikipédia. Não importa tanto que os fragmentos tenham sido recortados e colados, mas sim que essa prosa neutra e asséptica da famosa enciclopédia da web seja quase indistinguível das demais.

Exceto por algumas explosões de estimável maledicência, Michel Houellebecq tende a recorrer àquela prosa que não complica a vida de ninguém, muito menos a sua. O que ele entrega é um mundo descafeinado, ocasionalmente extraterrestre, um relato interplanetário — “Alguns seres humanos, durante o período de maior atividade de suas vidas, tentavam, além disso, associar-se em microgrupos, designados como famílias, tendo como finalidade a reprodução da espécie; mas essas tentativas, na maioria das vezes, duravam pouco, por motivos ligados à ‘natureza dos tempos’, ruminava ele, vagamente, dividindo um espresso com a namorada (encontravam-se sozinhos no balcão do bar Segafredo, e, de modo geral, o movimento no aeroporto estava fraco, o burburinho das inevitáveis conversas acolchoado por um silêncio que parecia consubstancial ao lugar, como em certas clínicas particulares).” E é aí que nosso autor segue o fluxo em termos de estilo.

Mas isso é Houellebecq. O que lhe interessa é a atualidade. As ideias, ou como as ideias. Aldous Huxley para todos os públicos. Ele busca ser tão contemporâneo que parece escrito sem perder de vista as manchetes dos jornais. E é tudo muito bem-feito, muito escrupuloso em sua arte; e cinza, pop, tabaco e vinho argentino. Entre cutucar o ponto sensível e gentilmente nos indicar o caminho certo com sua prosa/rampa, a gente vai se envolvendo aos poucos, principalmente na segunda parte do romance, quando aparece o personagem Michel Houellebecq, um escritor francês de sucesso, paradoxalmente odiado, segundo ele, pela mídia francesa — “Sou realmente detestado pela mídia francesa, imagine, a um ponto inacreditável; não se passa uma semana sem que eu seja vituperado por essa ou aquela publicação. — Sei disso, pesquisei na internet antes de vir.”

Mais uma vez, um romance usa um personagem com o mesmo nome do autor. E na terceira pessoa; a autoparódia vem com a canção. Ele é um sujeito quase simpático, deprimido, viciado em salsichas. O jogo está servido, principalmente para um autor que criou uma imagem tão conflitante para si mesmo. Há três ou quatro provocações que tocam o sino, e na terceira parte, já estamos imersos em um romance policial. Um cadáver — um enorme cadáver —, moscas e um comissário prestes a se aposentar. A vida era outra coisa. Tudo bem.

Talvez não haja nada tão inútil quanto tentar ser feliz. “Havia ocasiões em que tinha o hipermercado exclusivo para ele — o que lhe parecia ser uma excelente aproximação da felicidade.”


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O mapa e o território
Michel Houellebecq
André Telles (Trad.)
Record, 2012
400p.


Notas da tradução:
1 As citações de O mapa e o território neste texto são da tradução de André Telles (Record, 2012).


* Este texto é a tradução livre de “Houellebecq y la felicidad”, publicado aqui, em Jot Down.


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