Tirza, de Arnon Grunberg



Por Pedro Fernandes



A vida que se esconde no subsolo. Esta é uma definição acertada para Tirza, de Arnon Grunberg. Este é um romance que volta a algumas das obsessões do escritor, sobretudo aquela que poderíamos designar como o impasse entre culturas num estágio da civilização ocidental em que essa se vangloria de que as relações globais é sua maior conquista depois de instaurada as fronteiras de nação e de identidade nacional. Mas, nele, o holandês se debruça a investigar o complexo das relações de posse imposto por um modelo familiar segundo o qual os pais têm sobre os filhos uma responsabilidade desmesurada de prepará-los para mundo e em parte alimentados pelo desejo de não perecerem, no futuro, do abandono e do esquecimento.

Nesse ínterim, a personagem Jörgen Hofmeester é um retrato ideal através do qual se pode avaliar agudamente a condição em que a posse é tornada obsessão individual ao ponto de toda uma existência ser canalizada para o que, aos olhos do mandatário, é um mero exercício de dedicação indispensável à humanidade. Os limites dessa relação – aqui, de um pai por suas filhas – é a ruptura total, como é caso de qualquer obsessão, com todas as possibilidades regulatórias que determinam o distanciamento entre o eu e o outro. Seu ponto máximo, talvez, mais que a cegueira que torna o dominador incapaz de distinguir tais fronteiras, é o apagamento do outro, sempre devorado desde sua individualidade ao seu direito de ser o outro, qual Cronos devora seus filhos sob o medo de ser destronado por eles.

De alguma maneira a simbologia do mito, aliás, é significativa para uma leitura sobre Hofmeester. Tanto se considerarmos o ato de devoração do filho como uma figuração da impotência sexual, como o fato de que ele preenche todas as características do perfeito chefe de família burguês que espera das duas filhas, Ibi e Tirza, que alcancem todas as possibilidades que ele próprio não alcançou. Mas uma vez percebido o desvio dos limites que forjou para elas – limites, aliás que devem sempre incluir o reconhecimento dele enquanto a figura propiciadora – é passível de levá-lo sempre à errância e à ruína. É evidente que, capazes de urdir sua própria existência, todo filho poderá significar o destronamento do pai. Ainda mais se este for, à maneira da personagem de Tirza, um homem que se deixou entregar ao que julga ser uma imposição do destino.

É que o pai de Ibi e Tirza pertence à sorte dos resignados. Sua aspiração do melhor para as filhas que não se reduz apenas a desejar-lhes um grande futuro, mas o futuro que ele, Hofmeester, não teve é um projeto nascido ao acaso. Isso porque as filhas pertencem à ordem das fatalidades, qual a de não conseguir a posição sonhada de um grande editor. E o que perturba a existência desse homem é ter falhado em todas as suas motivações: o casamento é uma farsa, uma vez servir apenas aos jogos de fantasia forjados entre os dois, mais da parte da mulher a fim de alcançar algum tipo de envolvimento amoroso com o marido; o emprego na grande editora é transformado em comodismo e quando despedido da empresa se vê acusado de em quase trinta anos de profissão não haver conseguido revelar um nome importante sequer.

Tornado um homem sem crenças, preso apenas a provar para si próprio a inexistência de qualquer sentimento capaz de unir ele a outros, e crente definitivo na capacidade de regular os roteiros de sua própria existência e daqueles que têm como de sua responsabilidade – no caso aqui, as filhas – Hofmeester será arrastado cada vez mais pela incapacidade de empatia e se apegará ao único deus possível nas condições do mundo material em que vive: o dinheiro. Fiel poupador de seus recursos e estrategista de organização do seu capital em prol de oferecer o tal futuro dos sonhos às filhas, todos os seus planos desmoronam um a um como se um castelo de cartas. Primeiro, é a ruptura com um de seus projetos: a filha mais velha, muito cedo escolhe fugir da sombra do pai para viver à maneira que individualmente sonhou para si. É quando Hofmeester transfere todas as forças de domínio sobre a filha caçula. Em favor de seus próprios caprichos a vida de Tirza é integralmente apagada para servir aos desígnios do pai. O leitor não tardará perceber como ela não adquire qualquer protagonismo na narrativa porque em tudo paira a presença do pai; é ele, aliás, quem a todo tempo repete para a mãe dela, depois do período mais longo que esteve fora de casa, os valores de Tirza e o que ela representa na família depois de parte dela desfeita.



A impotência do macho se revela em Tirza em diversas dimensões: desde a mais simples, a do apagamento do desejo sexual de Hofmeester que finda na composição de seu desejo pelas figuras femininas destituídas de qualquer poder ou qualidade, à impotência de manutenção da ordem doméstica que à sua vista representa a falha maior e, evidentemente, a condição de destituição de seu trono. Ele tem ciência – ou pelo menos desenvolve a cada novo golpe que culminará com sua ruína total – do fracasso, mas, como toda boa figura burguesa, preferirá escolher a falsa certeza de que tudo funciona à maneira que deve funcionar as melhores vidas. Hofmeester forja, então, um universo cuja aparência deve servir unicamente aos modelos compreendidos pela ordem social como ideais. Não se trata, portanto, de fatalismo seu fracasso; trata-se da incapacidade de reconhecimento de suas verdadeiras condições e do funcionamento das coisas.

Tudo neste romance servirá ao jogo de velar e revelar, tal como Hofmeester percebe e constrói seu mundo. O episódio da grande festa que se dedica a preparar para Tirza pode ser tomado como exemplo para expor em grande parte a quantidade diversa de falseamentos produzidos por esta personagem para apresentação de seu mundo: desde o aparecimento repentino da mulher cujo sumiço sempre foi revelado como um trato de comum acordo entre ela e Hofmeester por este compreender que era do interesse dela uma viagem de autoconhecimento à compreensão de que Tirza, sua rainha do sol, havia subvertido de alguma maneira o que ele planejara para ela ao apresentar um marroquino como seu namorado.

Contrariado em todas as frentes, que por vezes poderá parecer ao leitor fruto de um excesso de ingenuidade ou de honestidade da personagem, à maneira daquelas figuras que depositam uma cega compreensão de que as coisas funcionam como são feitas para funcionar, Hofmeester perde-se no complexo torvelinho da existência. Até o fim de todo o périplo Grunberg consegue levar o leitor de um lado para o outro, do reconhecimento dessa personagem entre aquelas cujo dissenso da contemporaneidade as têm reduzidas coisas entre coisas, da reanimação da sentença de Tolstói segundo a qual cada família infeliz o é à sua maneira, isto é, da identificação e simpatia à total ojeriza por Hofmeester.

A desfaçatez, entretanto, não é o mal ao que devemos condenar a personagem. Hofmeester é produto de uma engrenagem que tem funcionado desde a constituição plena do atual modelo social em que a humanidade tem sido continuamente substituída pela indiferença. As aparências enganam – poderíamos exclamar no final da leitura de Tirza. O propósito de Arnon Grunberg parece ser mesmo este. E demonstra desde o título que atribui ao seu romance, afinal esta não é a história de Tirza; toda expressividade desta personagem é irradiação do que lhe impõe Hofmeester. Por isso também a narrativa que constitui este romance está interessada no que se passa no subsolo da existência. A constatação é produto do texto preferido de Hofmeester, sem dúvidas, a personagem principal nesse enredo: Memórias do subsolo, de Dostoiévski.

O homem do subsolo guarda um estranho rancor contra a vida da qual ele próprio prefere se isolar, passar como o despercebido e analisá-la à distância. Também assim se comporta a personagem de Tirza, mas ela não findará apenas na contemplação evasiva do universo no qual se sente estrangeiro, preferirá qual Cronos – ou Raskolnikov, para citar outra obra do universo da literatura russa – ou uma fera do deserto africano, para onde vai nas cinzas do seu projeto individual de existir, devorá-lo. São raros os escritores de nosso tempo capazes de traduzir com tanta firmeza a barbárie de nossa civilização. E Arnon Grunberg é um deles.



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