A casa de Hemingway em meio à desolação

 
Por Pablo Mediavilla Costa

Ernest Hemingway lendo em seu barco, Pilar, 1947-1948. Arquivo: John F. Kennedy Presidential Libray and Museum.



Os fogos de artifício sacodem as tranquilas noites de San Francisco de Paula, nos arredores de Havana. Ernest Hemingway lidera um grupo de amigos pela vegetação rasteira de sua fazenda, agem sob suas etílicas ordens como um comando de guerrilheiros, armados com bombas fedorentas e hastes ocas para lançar foguetes e outros fogos de artifício adquiridos no bairro chinês. Em pé na cerca da propriedade vizinha, assistem a um banquete do rico Frank Steinhart, herdeiro da Havana Railway Co. — empresa de transportes da cidade — com quem Hemingway teve uma disputa territorial. Ao sinal do escritor, lançam o ataque e correm de volta para a casa. Papa — apelido imortal na boca de Marlene Dietrich — sempre o último a bater em retirada e “ver como saltavam copos e pratos dos comensais à medida que estouravam os fogos de artifício ou as senhoras se desculpavam e recuavam quando o ar trazia o que as bombas fedorentas lançavam. A ação se mostrava saborosa porque Steinhart soltava seus cachorros. Numa ocasião, ele ficou tão furioso que respondeu disparando uma pistola quatro ou cinco vezes contra a casa.” A história aparece em Hemingway em Cuba (Letras Cubanas, 1984) de Norberto Fuentes e é contada pelo espanhol José Luis Herrera Sotolongo, um cirurgião do exército republicano que conheceu Ernest no front de Jarama e que, após se exilar em Cuba, tornou-se seu médico pessoal e companheiro de bebida e aventuras.
 
A figura robusta do estadunidense era familiar ao povo de Havana desde que ele ocasionalmente começou a ancorar no Hotel Ambos Mundos em 1932, mas a ancoragem final na ilha veio em 1940, quando sua terceira esposa, Martha Gellhorn, o convenceu a comprar Finca Vigía por dezoito mil e quinhentos dólares da época. A casa lembrava um velho navio e muitas vezes, a céu aberto, de bermuda, garrafa de uísque e revólver calibre 22 no cinto, ele se portava como um capitão que teve de salvar o navio dos furacões que o atingiram. Chegou a escrever diários de bordo. “Sempre tive boa sorte escrevendo em Cuba”, confessou a um amigo, e a fazenda seria seu refúgio até 1961, quando um tiro de espingarda no céu da boca varreu tudo em uma cabana em Ketchum (Idaho). Caprichoso, mal-humorado e terno como uma criança, o peso-pesado faria da ilha um playground onde poderia liberar seu talento violento e desenfreado, sua sede insaciável, sua ambição infinita de pescar peixes-agulha maiores e escrever mais e melhores páginas, ligadas por um clipe que dizia “Isso deve ser pago”. “É divertido ter cinquenta anos e sentir que vai defender o título novamente. Ganhei nos anos vinte, defendi nos anos trinta e quarenta e não me importo em defendê-lo nos anos cinquenta”, disse à jornalista Lillian Ross, em perfil publicado pela The New Yorker. Na ilha, terminou de Ter e não ter e escreveu Por quem os sinos dobram, Do outro lado do rio, entre as árvores, O velho e o mar, As ilhas da corrente e Paris é uma festa — os dois últimos publicados após sua morte. Em 1954, ele atendeu a uma ligação de Estocolmo e, em suas palavras de boxe, manteve o título.
 
Lillian Ross começou seu artigo assim: “Ernest Hemingway, que pode muito bem ser o maior romancista e contista estadunidense vivo, raramente vem a Nova York. Ele passa a maior parte do tempo numa fazenda, Finca Vigía, a nove milhas de Havana, com sua esposa, um serviço doméstico de nove pessoas, cinquenta e dois gatos, dezesseis cachorros, algumas centenas de pombos e três vacas”. Levei dois dias para visitar Finca Vigía. O primeiro, numa terça-feira, estava fechada e os quinze dólares do táxi foram em vão. Tenho uma memória borrada da segunda, dez anos se passaram, mas guardo as fotos e um caderno no qual anotei como os guardas eram chatos. Restaurada muito recentemente em uma colaboração inusitada entre Cuba e os Estados Unidos, a casa definhava então sob o sol caribenho, as madeiras e o telhado em péssimo estado, mas por dentro, como se o dono pudesse chegar a qualquer momento, a decoração de uma vida avassaladora permanecia intacta: as cabeças de búfalo, impala, órix e kudú nas paredes, as peles de leão e leopardo, a adaga nazista com a qual ele afirmava ter matado um soldado alemão, os pôsteres de tourada, os mais de nove mil livros — os volumes de El Cossío, entre eles —, o peculiar selo que ele havia desenhado para marcar gado, cartas e louças, móveis de mogno e as anotações de seu peso na parede do banheiro. Salas muito brancas que admirei pelas janelas por onde um dia passaram Rocky Marciano, Marlene Dietrich, William Faulkner, o toureiro Ordóñez, Jean-Paul Sartre, Gary Cooper ou Graham Greene. Até mesmo seu barco, o Pilar, encalhou a dois passos da piscina em que Ava Gardner se banhou nua e ele nadava oitocentos metros todas as manhãs.
 
“De seu pai, que amava o mundo natural, aprendeu a pescar e atirar, e o amor pelas duas coisas veio a moldar sua vida, junto com uma terceira, a escrita”, diz o romancista James Salter, que omite a paixão pelo boxe — a altura das outras três — apesar de contar a seguinte anedota que se passa no arquipélago de Bimini, ao leste da costa da Flórida, onde Hemingway passou longos períodos entre 1935 e 1937. É meia-noite e o jovem Ernest Miller fecha os punhos contra um atum azul de duzentos e trinta e três quilos que paira sobre um píer ao luar e com o qual lutou por mais de sete horas a bordo de seu novo barco, o Pilar. “De ombros largos, bigode e sorriso branco de fora-da-lei, ele dominava o marlin. Destruía-o”, acrescenta Salter. A Corrente do Golfo, a grande massa de água a caminho do Atlântico que passa ao norte da ilha, “onde existe a melhor e mais abundante pesca que já conheci”, foi um dos seus fascínios, registrado em reportagens e crônicas. No comando do Pilar, construído em 1934 num dos estaleiros nova-iorquinos e que passou a pagar com suas crônicas africanas para a Esquire, estava Gregorio Fuentes ou Grigorine, como preferia o escritor. Fuentes nascera em Lanzarote e conheceu um jovem Hemingway no meio de uma tempestade na costa americana. Ele lhe pagava duzentos e cinquenta dólares por mês e, numa viagem, se encontraram com um velho pescador que lutava para tirar da água um grande imperador, parcialmente comido por tubarões, e recusou qualquer ajuda: “Filhos da puta. Vão embora”, dizia. Grigorine passou o resto da vida em Cojímar, a vila de pescadores onde o Pilar já não existia, contando mil e uma anedotas a qualquer turista que quisesse ouvi-lo, depois de pagar um bom maço de contas, como aconteceu com Christopher Hitchens em sua visita ao ilustre marinheiro. Morreu em 2002 com cento e quatro anos.  
 
“Vive-se nesta ilha porque para ir à cidade só precisa de calçar os sapatos, porque se pode tapar com papel a campainha do telefone”, deixou numa crônica de 1949 em que se referia a outros benefícios de Cuba, como as lutas dos galos, da brisa fresca da manhã, do beisebol — financiava dois times de garotos de San Francisco de Paula — a natureza exuberante e a tranquilidade material em que vivia. “Hemingway nunca viu Havana, embora tenha dito que sim. Passou por ela como uma bala”, escreveu Guillermo Cabrera Infante. Seu silêncio público durante o regime de Batista — apesar de seu ódio particular pelo ditador — e seu temperamento áspero quando não queria ser incomodado lhe renderam muitas inimizades. O escritor cubano Lisandro Otero conta que, depois de se esquivar de um soco de Papa no Floridita, o convidou para uma festa em Vigía, com um trio de flamenco animando uma multidão de estadunidenses. Otero foi recebido pelo anfitrião, mas não ficou muito tempo ali. Hemingway recuava muitas vezes, mas também se sabia o centro das atenções, sempre pronto a inventar uma nova lenda para a posteridade e os cubanos, em seu tempo detido, parecem manter intacta a memória de cada uma delas. Na casa onde passei meu mês de Havana havia um retrato do escritor e um copo de cachaça ao lado dele. Na supersticiosa e abençoada Havana, poucos são os mortos ilustres para os quais se pode colocar um altar.

Ernest Hemingway durante a Guerra Civil Espanhola. Arquivo: John F. Kennedy Presidential Libray and Museum.


 
A rotina da bebida começava cedo. Na mesma esquina da barra de Floridita onde agora se encontra uma estátua de bronze, a estátua de carne e osso bebia, não muito tarde pela manhã, o primeiro de uma dúzia de daiquiris, esperando que o motorista lhe trouxesse os jornais. A escrita, sempre de madrugada — gabava-se de ter visto todos os amanheceres da sua vida — dava lugar à diversão, e isto sempre começava no Floridita, onde se encontrava com “militares da Marinha, navegadores, funcionários de alfândega e do departamento de imigração, jogadores , diplomatas, aspirantes a literatos, escritores em melhor ou pior situação, médicos e cirurgiões que vinham à capital para participar de vários congressos científicos, membros da Legião Americana, atletas, indivíduos que estão com pouco dinheiro, sujeitos que serão assassinados dentro de uma semana ou um ano, agentes do FBI, o gerente do banco mantém algo do seu dinheiro, alguns tipos bizarros e muitos amigos cubanos.” Esqueceu-se das putas, principalmente da mulata Leopoldina Rodríguez ou a Honesta, a quem pagou até o enterro. “A bebida não podia ser melhor, nem parecida, em nenhuma parte do mundo” e o culpado era o barman catalão Constantino Ribalaigua ou Constante, como os cubanos o rebatizaram. O escritor amava o seu capricho e sua arte e, embora pareça comprovado que não foi o inventor do daiquiri, juntos criaram um novo drinque, o Special ou Hemingway Special que era, como não poderia ser de outra forma, com uma porção dupla de rum branco e nada de açúcar. Antes de retornar a San Francisco de Paula para o almoço, ele carregava uma última rodada de daiquiris em uma garrafa térmica, “a bebida da viagem”. É impossível deixar de falar de Floridita se se passa por Havana, embora o lugar sofra da mesma nostalgia obscena em que o resto da cidade foi submetida.
 
Hemingway fornecia suas propriedades nas bodegas Recalt da capital, as mesmas que visitou quando jovem, quando morava em Key West, e nas quais comprou seiscentas caixas de conhaque que contrabandeou para o porão do Sloppy Joe’s, a cantina de seu amigo Joe Russell, determinado a lutar contra a lei seca. Com o dinheiro da operação clandestina, Ernest saiu para viajar pela Europa. Na Vigía, o consumo diário de álcool era alto, três ou quatro garrafas de uísque se os amigos vinham visitar, várias garrafas de vinho em cada refeição e um coquetel em cada ritual. A preocupação de Hemingway com os primeiros estragos da bebida fez com que sua biblioteca começasse a acumular livros sobre o fígado e suas enfermidades. As batalhas etílicas também foram travadas no mar. O Pilar estava bem abastecido e o patrão Gregorio Fuentes mantinha uma página com a receita dos coquetéis preferidos do patrão. Quando a viagem durava vários dias e o gelo escasseava, Herrera Sotolongo dirigia seu carro com o porta-malas carregado de gelo ao lugar indicado pelo rádio do barco.
 
O médico e os exilados espanhóis Juan Duñabeitia, a quem chamavam de Sinsky, e o padre Andrés Untzaín, formavam o círculo de amigos mais próximo e constante que Hemingway teve em Cuba. Estava também José Herrera, Pichilo, um cubano que acompanhava o escritor nas brigas de galos e com quem acabou dividindo as apostas e criando as aves na própria fazenda. Vencendo a batalha por seu galo, Hemingway convidou um oponente para a cantina, não sem antes avisar: “Pegue o que quiser, mas não se torne um bêbado comedor de merda. Bebo e fico bêbado todos os dias, mas não incomodo ninguém”. Numa carta ao crítico russo Ivan Kashkin, ele confessou: “A vida moderna exerce frequentemente pressão mecânica e o álcool é o único antídoto mecânico.” No pequeno móvel bar ao lado da poltrona onde passava a tarde lendo, havia “seis garrafas de água mineral com gás El Copey, uma garrafa de scotch White Horse, uma garrafa de gim Gordon, seis garrafas de Schweppes Indian Tonic, uma garrafa de rum Bacardi, uma garrafa de scotch Old Forester, uma garrafa de vermute Cinzano e uma garrafa de champanhe, sem rótulo”. Ainda estão lá, manchados e cheios de água, como se tivessem sido resgatados de um naufrágio.
 
As sessões de cinema na Vigía eram frequentes, quase sempre dedicadas a documentários de boxe. O pouco do que ele gostava em Hollywood eram alguns amigos e verificadores dos direitos de seus livros. No final da Segunda Guerra Mundial e em agradecimento pela contribuição mais fantasiosa do que real do escritor à caça aos submarinos nazistas a bordo do Pilar, a embaixada dos Estados Unidos em Havana o presenteou com um documentário de vinte horas, Victoria at sea, filmado pela própria Marinha dos Estados Unidos. Hemingway o projetava para seus amigos repetidamente e o parava no mesmo ponto: um sargento estadunidense olha para a câmera após queimar vivos com um lança-chamas alguns soldados japoneses que acabaram de se render.
 
“Duvido que essa cena apareça em todas as cópias de Victoria at Sea”, dizia Hemingway.
 
“Gente”, perguntou uma vez o padre Don Andrés, “por que sempre param nesta feliz cena?”
 
“Juramos matar esse tipo onde quer que o encontremos”, explicou o médico Herrera Sotolongo. Ernesto quer que aprendamos seu rosto de cor.
 
A vida, ou a visão que ele tinha dela, parecia sempre condenada ao território quadrado do ringue ou da página em branco, ao uivo da batalha, ao fio tenso que une o humano à besta. Ele nunca quis ou soube como baixar a guarda. Ao repórter do New Yorker, disse: “... só os tolos se importam em salvar suas almas. Quem diabos deveria se importar em salvar sua alma quando o dever de um homem é perdê-la de forma inteligente, da mesma forma que você abriria mão da posição que está defendendo se não pudesse mantê-la, o mais cara possível, tratando de convertê-la na posição mais cara que você jamais se entregou”. Quando George Plimpton visitou Vigía em 1958 para sua lendária entrevista ao Nobel estadunidense na The Paris Review, encontrou um Hemingway em retirada: “Esta propriedade é um lugar esplêndido... Ou era.” Na conversa, ele se mostra relutante em falar sobre seu trabalho porque “embora haja uma parte da escrita que é sólida e não pode ser danificada mesmo que se fale dela, a outra é frágil e se você falar sobre ela quebra e você fica sem nada”.
 
Pouco antes de deixar a ilha para a qual nunca mais voltaria, em 15 de maio de 1960, Hemingway conheceu Fidel Castro no torneio anual de pesca que o escritor havia criado dez anos antes. Foi a única vez que se encontraram e Mary Welsh, sua quarta e última esposa, relata em suas memórias que eles não gostaram do caráter do jovem líder. Castro venceu em uma das categorias enquanto Che Guevara, que o acompanhava, lia Vermelho e o negro de Stendhal num camarote. Um ano depois, após o suicídio, Mary visitou Finca Vigía para a execução de seu testamento. O próprio Castro apareceu como o representante oficial cubano e sentou-se na cadeira de leitura de Papa. A viúva e o ditador concordaram em transformar o local em museu. Mary saiu com alguns utensílios de mesa e várias pinturas adquiridas nos anos parisienses: A fazenda de Miró, Jogo de dados, Composição e Paisagem de André Masson, Monumento de Paul Klee e O toureiro e O violonista de Juan Gris. Castro recusou uma carabina Mannlicher Schoenauer 256, a favorita de Hemingway, e os carros, um Plymouth e um Buick, foram dados a amigos na cidade. Os únicos que permaneceram vivos mais alguns anos foram os gatos, a nova raça que o escritor afirmava ter criado e as três vacas.
 
Em 19 de novembro de 1944, desde a terrível batalha na Floresta de Hürtgen entre as tropas estadunidenses e alemãs, Hemingway escreveu a Mary: “Os krauts são fortes, astutos, profissionalmente inteligentes e mortais. Vamos matar e destruir alguns. Mas enquanto isso, tempos desastrosos... Todas as florestas estão devastadas [...] É melhor deixar isso e pensar como, quando você vier de avião de Miami, estarei esperando por você no aeroporto de Rancho Boyeros [Havana], e você passará pela alfândega e nós dirigiremos por um belo país até o lugar onde começaremos nossa vida maravilhosa. Você pode estar com medo, mas a menos que tudo tenha sido destruído na face da terra, será lindo. E se tudo for destruído, pelo menos teremos uma casa no meio da desolação”.
 
* Este texto é a tradução de “El hogar de Hemingway en medio de la desolación”, publicado aqui em Jot Down.

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