Itinerários da poesia de Zila Mamede


Partida

Quero abraçar, na fuga, o pensamento
da brisa, das areias, dos sargaços;
quero partir levando nos meus braços
a paisagem que bebo no momento.

Quero que os céus me levem; meu intento
é ganhar novas rotas; mas os traços
do vigem mar molhando-me de abraços
serão brancas as tristezas, meu tormento.

Legando-te meus mares e rochedos,
serei tranqüila. Rumarei sem medos
de arrancar dessas praias meu caminho.

Amando-as me verás nas puras vagas.
Eu te verei nos ventos de outras plagas:
Juntos – o mar em nós será caminho.

(Zila Mamede, Salinas)



Zila Mamede – itinerário e exercício da poesia (parte II): Salinas – do mar à terra da mãe

por Paulo de Tarso Correia de Melo*


“Pesada e real, diversa é a praia agora”
(Soneto das Variações, Rosa de Pedra)


Salinas foi editado em 1958, na “Coleção Aspectos”, do Ministério da Educação e Cultura, após receber o prêmio Vânia Souto de Carvalho, Recife, 1958. Embora Zila Mamede o tenha definido como um livro que mereceu maior cuidado que a pura intuição de Rosa de pedra e lhe reconheça maior atenção à técnica poética, à forma e ao bom uso dos temas, além de uma intenção telúrica, Salinas conseguiu tudo isso apenas em partes e se caracteriza, hoje, no conjunto da obra e Zila Mamede, como o livro de transição.

Salinas, apesar disso, apresenta um poeta de visão mais facilmente objetivada. O mar, o rio, a rua, a natureza são agora mais objetivamente vistos, mais palpáveis, embora não raro envolvidos pela forma rara e leve de poemas como “Noturno do Recife” (Prêmio dos Concursos Permanentes de Poesia do Jornal de Letras, Rio de Janeiro, 1954) e “Santa Teresa”. No livro também se pode observar o início de um processo de depuração e contenção vocabular. O soneto “Partida”, por exemplo, é uma bem comportada visão e síntese da “Canção do Sonho Oceânico”, do volume anterior.

A intenção telúrica de Salinas é imediatamente perceptível nos dois longos poemas finais (“A cruz da menina” e “As enchentes”), mas é mais forte, embora menos manifesta, em três outros poemas que, além disso, marcam definitivamente Salinas como um livro de transição para o canto agrolírico de O Arado: “Chamado”, “Soneto da Iniciação” e “A (outra) face”.

Nota-se, por outro lado, que o itinerário para a terra-mãe, que começa a ser entrevisto nos três poemas acima, ainda é, vez por outra, desviado pelo mar como nos dois últimos quartetos do poema “Retrato”, onde os dois primeiros quartetos, estes sim, já denunciam a liberdade sintática, a linguagem inusitada e em muitas vezes repentino acento metafísico, responsáveis pela grandeza da poesia de Zila Mamede:

Me lembrava da menina
escavacando o chão agreste,
me lembrava do menino
carregando melancias.

Em que terras desembocam
esses talos de crianças
mas finos que as maravilhas
mais fortes que a ventania?


ANEXOS



Urbano Recife - Imagem: Blog Amizarteveragomes

Noturno do Recife

Noturno do Recife me vestindo
o pensamento, leve como as acácias
que o vento distribui pelas calçadas
e as leva passeando a água dos rios.

Que paz derrama a lua na roupagem
das pontes, na magreza dos mocambos,
na distância afogante dos subúrbios
insinuando morte e carnaval.

Recife. Luz fugindo, se apagando.
Recife. Céu tão claro, céu tão perto
(a alma noturna bóia-me nos dedos)

Recife pendurado nos meus olhos
eu beijo a tua noite nos meus sonhos
e planto o meu destino nos teus mares.

(Zila Mamede, Salinas)


Imagem: J C Victor. Santa Tereza. pastel sobre canson.

Santa Teresa


a Luíza e Augusto Ribeiro

O tom dos sinos
escorrendo nas ladeiras,
os ventos do Curvelo
e o cheiro morno do Silvestre.

Ponte dos arcos,
quantas brumas
meus sapatos te tocaram,
sós.

Santa Teresa:
as estrelas se mudaram para o chão.

(Zila Mamede, Salinas)


Canção do sonho oceânico

I

Empossei-me dos caminhos
convergentes para o mar.
Três dias nasci areias
depois, conchas esquecidas
na memória dos rochedos
que julgavam ser navios
carregados de luar.

Fui areia, agora, búzios
chamando os ventos do mar.
Quando me senti sargaços
pedi às algas tranqüilas
que me emprestassem coroas,
e vestindo lenda e sal
arranjei sete concertos
na paisagem mineral.

Compus meus olhos marinhos
quando a fuga da maré,
carregando os pensamentos
dos corais e dos recifes,
conduziu-me em sete fontes
dormindo peixes e estrelas
no outro sono do mar.

Agora nascida estrela
algas, recife e coral,
não me contentam areias
nem me prende o litoral.
Pedindo o vôo das gaivotas
em rumos desconhecidos,
sonhando estradas marinhas
compondo sete oceanos
para neles navegar.

Sou como o sal das salinas,
Pois fui nascida no mar.

II

Que mundo não conhecidos
beberei nos sete mares?
Que fantasmas soluçantes
terei de então consolar?
Ó brisas, ó tempestades,
cantai bem alto, cantai
para embalar leves sonhos
cometidos em alto mar.

Deixei meus olhos dormindo
nas mãos de musgos medrosos
enquanto em busca de estrelas
converti-me em brancas ilhas
beijadas por sóis distantes,
pelo ímpeto das ondas
vestindo-me tule e neve,
para a surpresa das bodas
da minha alma irrequieta
com a alma triste do mar.
Onde o meu sonho ancorado?
Onde a bandeira de paz?

Velhos navios perdidos,
sem rotas, a flutuar,
dormindo na madrugada,
fingindo portos ao sol,
ficai perdidos, ficai:
sois o meu presente aos tempos
por deixarem de contar.

Navego nas minhas asas,
de que me investi no mar.

Irei brincar com fantasmas,
os governantes do mar.
Falarei língua das ondas,
cantarei canções marujas,
escreverei meus poemas
nos lábios dos caramujos:
levá-los-ão as chuvas, ventos
aos peixes e caravelas
que brincarão de cirandas
nos recôncavos do mar.

Dormi o sono dos deuses
no ventre dos sete mares.
Despertei boiando acácias
deixadas por navegantes
que tocaram meus caminhos
em naves feitas de sonhos.

Passai, marujos, passai,
que não voltarei do mar:
oceânica persisto;
sou produto desse mar
que compus nas minhas mãos
da verdura do meu sangue,
das águas dos olhos meus.

Como pois ser continente
se fui nascida no mar?

III

Renasço purificada
desse meu sonho de mar.
As virgens águas libertas
arrastam meus pensamentos
que, se investindo de abismos,
são liberdade também.

Sonho meu acorrentado,
voai ligeiro, voai
no galope azul das ondas,
nos soltos ventos do mar,
deixai de lado coxilhas,
esquecei-vos de planícies
para encurtar os caminhos
convergentes para o mar.

Ó marés de minha infância,
onde acabastes de ser?
Onde o feitiço dos olhos
das sereias de luar?
Onde piratas e medos
meus sonhos a povoarem?

Meus vividos oceanos,
minha infância, meu terror,
deixai liberto meu sonho,
não maculeis seu calor.
Quero esposá-lo tranqüilo
como o canto das estrelas,
quero-o acordes e sonatas
nos meus olhos de coral,
pois meu livre sonho verde
nem por sete continentes
deixaria de ser mar.

O meu noivado marinho
teve alianças de sal.
Mas, que mar satisfazendo
os meus anseios de mar?
Que liberdade habitando
minhas plagas, meus grilhões?

Vinde, amados oceanos,
beijai meus olhos, beijai,
soltai-me de vãos navios,
deixai-me pura, vagar:
eu só quero a liberdade
para nela me afogar.

Não sou livre continente
mas peço liberto mar.

IV

Não plantes os teus caminhos
nas vizinhanças do mar.

Sete veredas marítimas
te darei desde as nascentes,
abrir-te-ei enseadas
e ver-te-ei flutuar.
Navegarás meus caminhos
conduzido em sete fontes,
dormirás brancas estrelas
num outro sono de mar.

Depois, seremos regatas
em costas sempre esquecidas.
Serão teus meus oceanos,
meus rochedos, meus corais.
Os ventos e tempestades
falar-te-ão de acalantos
remando os teus verdes braços
as claras águas do mar.
Por que gerar mais estrelas
nesses caminhos do mar?

Das puras algas tranqüilas
hei de tecer-te um lençol:
hás de sonhar meus navios
desprendidos a chorar;
hás de sentir-me em teu sono
como nascida no mar.
De ti compus meus caminhos,
meus sete sonhos de mar.

(Zila Mamede, Rosa de Pedra)


A cruz da menina
(fragmento)

1. O fogo do céu lavando
paredes de serranias,
que a areia lavrada em sangue
brota dos poros da terra
queimada de tantos sóis
onde célula inocente
se desfez na ventania
implantou-se no grotão.

2. Oito luas contempladas
pelos olhos da menina
pouco depois eram morte
nos seus braços de cipó;
e a terra dos seus andares
e as aves do seu viver
deixou-as fixas no mato
que ela sempre capinou.

A cruz da menina existe
mas seu gemido, não sei.

3. Aquela gruta escondida
lhe causava espantação;
mas a madrasta queria
trinta ovos de guinés
que a menina colheria
(ao toque de ave-marias)
nas bandas lá da serra,
bem nas fundas do sertão.

4. O medo criava rugas
nas plantas dos pés infantes;
das mãos segurando um cesto
escorriam cachoeiras
de suor e assombração:
temia o som do chicote;
e na serra escurecendo,
a descambada do sol.

5. De vez em quando
parava observando o céu quieto
como a esperar que algum anjo
lhe trouxesse companhia
ou rogando ao sol distante
não deixasse anoitecer
- seu rancho já estava longe.
Na serra, negror de breu.

Os cabelos da menina
Viraram capim, no chão.

6. Pensava nas luas idas
quando Mamãe a embalava
de manha e ao pôr-do-sol
e lhe contava as histórias
de bruxas, de pastorinhas.
(Numa rede toda branca,
tão branca como seus dedos,
um dia subiu ao céu)

7. Agora a luz dos seus anos
tão pequeninos se fora.
A nova mulher, na lida,
sugava-lhe os braços tenros
e a criança já madura
lavava roupas no poço
e o sono de sua infância
decorria sem amor.

Uns olhinhos de inocente
às aves do céu jogou.

8. A gruta se aproximava
na ponta dos pés andando
não sabendo que o terror
precedia outro maior,
que a morte se antecipara:
seus cabelos alongados
seriam cabo seguro
para a rude imolação.

A madrasta de tocaia
a morte leva na mão.

9. O grito afundou na serra,
o gemido entrou no chão,
o sangue duma inocente
lavou a gruta e o capim.
Um pescoço delicado
caiu nas brenhas da terra,
rolou na pedra vermelha
de sangue e calor do sol.

A cruz da menina ao longe,
um caminhante a rezar.

(Zila Mamede, Salinas)


As enchentes

1. Cordões de chuvas caindo
escorrendo pela note
me lembram da aparição
das chuvadas no interior
engordando a chuva as nuvens
na cumeeira das serras
as águas se despregando
das platibandas do céu.

2. Menina bandoleira
no patamar da Matriz
- velho patamar de lajes
degraus de pedras de cor
pedra lisa de escrever
dos jogos de dama e de onça
dos ticas, das cabras-cegas
e dos cavalos-de-pau.

3. O escuro lombo da serra
que se chama de Santana
era sinal das enchentes
maduras para chegar.
Na frente vinha a zoada
das terras descaroçando
e na curva o braço d’água
já se fazia mostrar.

4. Torrente estoura rasgando
os beiços magros do rio
esguichando água barrenta
água suja galharia
cavalos em desespero
um papagaio a gritar
que na danação, o rio
arrancava o chão do chão.

5. Nesse caos renovador
enchente grande afogava
areal de muitas secas
de velhas desesperanças.
No mistério das deságuas
a plantação renascia
vazantes se enverdecendo
água doce de beber.

6. Enchentes de trinta e setembro
embocando ponte, açudes
gado roças caieiral.
Com seus olhos seus faróis
caminhões sapos moleques
mergulhavam rio escuro
pintando de girassóis
as águas da noite breu.

7. A trovoada tremendo
terra bruta arrepiada
varando clarão de raios
as campinas de pavor
pois raio dobra coqueiro
silencia lavrador.
Palhas bentas nas janelas
Salve-rainhas de dor.

8. Pudera saltar no rio
pudera as águas tocar
no paul fincar meus olhos
no barro me esculturar
na corda de salvar vidas
pássaro me improvisar
que as grandes faces do rio
eu nunca pude beijar.

9. O rio, tive-o longe
quando a chuva recolhia.
Sentava no patamar
toda noite, que de tarde
é que a chuva vem cair.
Meus lirismos de menina
minhas noites vaga-lumes
nos degraus os imprimi.

(Zila Mamede, Salinas)


Chamado

A terra de minha origem primitiva
me chama.
Circula-me nas veias o cansaço
de suas raízes.
A seus anos me devolvo
e a seus abismos me abandono.
O chamado da terra é um chamado
que não pode ser ouvido:
é um afago da terra
tendo cheiro de campina amanhecida,
que modela o meu sangue
como um soprar de vento
na tarde
dos canaviais.

(Zila Mamede, Salinas)


Soneto da iniciação

Essa pobre memória que te estendo
vem lavada por águas milenárias
que a depuram de lodos e cansaços
para o descobrimento do teu nome.
Meu rosto é uma bandeira, é um lenço em branco,
é oferenda aos mastros do teu sono,
que o amor descido desdobrou meu pranto
em trigo e lenda para que, ao sabê-lo,
teu gesto de ceifeiro me interrogue,
aos grãos imprima seu maduro enlevo,
a lenda volte ao primitivo abrigo;
e desfralde nas brisas da campina
as sementeiras, ordenando às águas
que fecundem meus olhos nos trigais.

(Zila Mamede, Salinas)


A (outra) face

Porque essa é a face (não a mais amada):
desnuda face, voz que te define
e te ama. Meus cabelos são campinas
de girassóis dormidos, são planuras
no poço da tristeza dos teus olhos.
O traço vertical que tu és – a força –
no caminho das longas esperanças.
Do trigo madurando a flor recolho
nesse amor meu tornando-a horizonte;
que eu te buscara antigo na jornada
e na palavra, exato; e te ganhara
(nos montes, nas searas, nas manhãs,
nos ventos, nas colheitas, nas estrelas,
nas hastes que sustentam girassóis)
a recolher o canto das espigas.

(Zila Mamede, Salinas)


Ligações a esta post:
>>> Salinas: do mar à terra da mãe
>>> Zila e eu

* Paulo de Tarso Correia de Melo é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Texto do autor publicado em MAMEDE, Zila. Navegos; A herança. Natal, 2003, p. 23 e 24.


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