O Sacrifício, de Andrei Tarkovski


Reflexão filosófica sobre o fim do mundo tornou-se o testamento de um dos maiores diretores do século 20

São raros os cineastas que chegam ao fim da vida a ponto de fazerem do último trabalho o seu melhor. Andrei Tarkovski conseguiu isso. O diretor russo já sofria com um câncer terminal no pulmão quando filmou a sua última obra-prima, em 1986. Como padeceu a vida inteira com problemas de censura, produção e distribuição precária de seus filmes na então União Soviética, mudara-se poucos anos antes para a Europa Ocidental. Na Itália rodou Nostalgia (1983). Fez O Sacrifício na Suécia, com a ajuda de vários colaboradores habituais de outro gênio, o sueco Ingmar Bernman (que o considerava o maior diretor do mundo, entre os seus contemporâneos), como o ator Erland Josephson, o diretor de fotografia Sven Nyvkist e o figurinista Inger Pehrsson.

O jornalista e ator Alexander (Josephson) faz aniversário e convida os amigos mais próximos para comemorar em sua casa de campo, isolada da cidade. Enquanto o pequeno grupo comemora, a televisão dá a notícia de uma tragédia nuclear de dimensões catastróficas, que provocará a Terceira Guerra Mundial. A iminência do fim do mundo leva cada um dos convidados de Alexander a ter uma reação: de desespero, sono, ou mesmo resignação. É o professor, entretanto, que tem a reação mais interessante. Um típico existencialista, ele até então ignorava com tranquilidade a existência de Deus, crendo apenas no homem e suas escolhas. Mas em um momento de angústia, até o mais ateu se preocupa, e o personagem entra em crise de fé, tentando entender os motivos do fim. Visita a empregada, uma suposta feiticeira, por acreditar que ao fazer amor com ela seja capaz de salvar o planeta. Depois, rende-se, ajoelha-se e reza. É a maneira de o diretor reiterar sua notória espiritualidade e fé.

Além da profundidade filosófica do tratamento, a beleza de O Sacrifício deve-se também à presença da música de Johann Sebastian Bach e da exuberante fotografia de Nykvist, que ganhou o prêmio de Melhor Contribuição Artística em Cannes pelo trabalho. O incêndio da casa no final, que dura seis minutos, revela o capricho do diretor de fotografia. Aliás, quando a cena terminou de ser filmada, descobriu-se que a câmera teve um defeito e outra casa precisou ser construída para ser queimada.

* Revista Bravo!, 2007, p.70.

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