Clientes de poesia

Por Pedro Fernandes




A proposta me apareceu na web. Mesmo crendo que muita coisa anda mal por aqui, há muitas iniciativas bacanas que têm feito a gente ir pela direção contrária disto. Um coletivo de 110 poetas das cinco regiões do Brasil e de alguma parte de Portugal interessados em tão somente uma coisa: fazer circular seus trabalhos (quando meti-me na ideia, falei dela por aqui). Usando para isso uma data que tem se tornado eventual por aqui: o dia 31 de outubro, data de aniversário do poeta Carlos Drummond de Andrade. O gesto revive a poesia de Drummond e injeta novos ventos nesse balão poético.

Não medi esforços. Os que me conhecem ou me acompanham por aqui sabem que me aventuro com poesia. Sim, me aventuro. E foi o próprio Drummond (ingrato) que me fez crer nisso com o negócio de uma ‘seriedade’ no gesto escritural da poesia. Apesar disso, concordo ostensivamente com ele. 

Já era véspera de ontem quando, já desacreditado de que pudesse fazer uma intervenção mais ampla na cidade. Cidade grande, poeta um só. E um galo sozinho não tece a manhã. Nem amanhã nem coisa nenhuma, pude, a princípio, crer. Mas, ainda canta. E já terá valido alguma coisa, também confiei nisso. A proposta como conversei com a Marina Mara, a mentora da ideia que teve seu grito com um pequeno grupo de drummondianos e parte dos herdeiros do poeta ainda nos idos de 2010, em Copacabana, Rio de Janeiro, lá onde está Drummond em estátua olhando os transeuntes, era que fossem os poemas escritos pelos 110 transformados em marca textos e dispostos nas livrarias da cidade (até anunciei por aqui). Mas, não deu. Voltando ao fio da conversa: estava já nas vésperas do dia 31 de outubro e ainda não havia encomendado os tais produtos. Pelo Brasil a coisa ia indo. Intervenções na Paulista com destaque na TV Cultura. Intervenções em supermercados, pontos de ônibus, avião, sala de aula, praça...

O processo de encapsulamento dos poemas. 


Então, o plano das livrarias firmou-se. Não mais seriam marca textos. Imprimir-se-iam poemas. Acomodaríamos em envelopes. E resto, já sabíamos: os caixas, para que servem, além de receber e passar dinheiro? 

Em conversa com os proprietários da Livraria Nobel que estariam organizando o tradicional Café Literário, e isso na terça, 30, fez-me sentir na oportunidade também a possibilidade de fazer a coisa andar. E andou. Intervenção no bate-papo do Café Literário. A primeira leva de poemas distribuídos. E alguns lidos e discutidos nos corredores dos livros. Outra leva deixada para está no caminho dos que por lá passariam no dia seguinte. 110 poemas foram poucos. E, na manhã do dia 31, a máquina trabalhou fabricando mais poemas. E o aspirante a poeta metido a agitador cultural envelopou quase outros 110. Material separado. Itinerário desenhado no papel. Começaria pelos pontos mais distantes.


Intervenção 1: no Café Literário da Livraria Nobel. 

E às nove da manhã, enquanto muitos já estavam e outros muitos já corriam para o trabalho, corria eu também de envelopes em mãos. Vagueagem poética. Isso também é trabalho. Entenderão o porquê se forem até o fim desse trajeto de bordo. Uma hora e quase duas depois já a primeira livraria recebia mais poema envelopados. Poesia envelopada. Quase mais uma hora adiante, outra; mais meia hora, outra; e outra. E, fim da manhã, outra. Todos passos sendo desenhados na tela de minha página virtussocial, mesmo com toda a bronca da santa tecnologia capenga e aparenciada que inventamos de ter de tempos para cá. Depois o passo-a-passo do almoço. E a ida ao último ponto. Pelo meio da tarde, sete pontos visitei. E neles ficaram para os que primeiro lá passaram depois de mim 190 poemas. 110 poetas.



Visualizar Declame para Drummond 2012 em Natal em um mapa maior


Por onde andei, com quem conversei, senti nos olhos que ouviam o que os poemas diziam, nos ouvidos que viam o que ia escrevendo sobre o Declame para Drummond, que tudo isso terá valido à pena. Logo vê-se que não estive só, estive alado por 110 vozes de faces que nunca vi e talvez não veja nunca. 

Encontrei na carência de poesia dos muitos que tomaram um poema e leram para si um modo de estar só possível de experimentação aos que se dão ao poema. Conclui aquilo que o poeta Salgado Maranhão terá dito numa determinada ocasião: num mundo tão caótico como o que vivemos é cada vez mais precisado de poesia as vidas humanas. Está aí porque essa vagueagem poética é trabalho. E deveria ser profissão. A vida como está, está perdida. Não encanto mais sobre nada. E é preciso de alguém que pulse centelha nas vidas paradas ou correrão o risco de irem indo amofinadas e prensadas pela maquinaria desse tempo de fosso.



Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #605

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Para lembrar João do Rio, o ficcionista

Boletim Letras 360º #596