O estado do bosque, de José Tolentino Mendonça (Parte II)

Por Pedro Belo Clara

Cena de "O estado do bosque", teatro do Bairro Alto. Foto:Luís Santos

A terceira cena do trabalho que temos vindo a discutir, nomeada de O diálogo do poço, garante pela primeira vez a participação de três personagens. Trata-se, em suma, de uma espécie de preparação metafísica para a viagem que Peter e Jacob, com o auxílio de John Wolf, o guia, estão prestes a realizar.

À medida que vamos avançando na peça, a inevitabilidade do bosque, tão desejado mas tão secretamente temido, torna-se uma evidência cada vez mais clara. Denota-se, por isso, um clima de leve tensão, uma espécie de anunciação, iminente, de algo que ninguém sabe ao certo o que possa vir a ser, típica em momentos de cariz iniciático ou preludial. Encontramo-nos, portanto, diante de uma hora embrionária, donde irrompe o tempo em que o cultivar dessa virtude tão em desuso nos dias de hoje, a paciência, assume uma relevância fulcral.

Peter: Que preparação é essa? O que é que nos falta?
John Wolf: A espera.

Antes de qualquer iniciado empreender a primeira passada no caminho que o aguarda, há que serenar as águas do rio interior e conceder tempo à espera. De quê ou do quê, afinal? Só cada um poderá, cumprido o percurso, responder por si próprio.

O diálogo desenrola-se nesta toada preliminar, onde a inquietação dos caminhantes, pela calada, cresce como sombra proliferando na cegueira do sol. Os motivos de Peter são novamente questionados, porém agora abertamente admitidos na penumbra da dúvida que os reveste. O mesmo colocará ainda a questão limiar que na anterior parte deste artigo foi lançada a debate: «para que servem os guias?». A resposta existe, e é obscura: «Nada é mais cruel que a ausência de ritos». Por mais que ao discípulo custe, o verdadeiro caminho, ou o caminho para a Verdade, não comporta o cultivo de autoridades, de padrões condicionantes, de ideias pré-concebidas. Como pode o novo, livre e espontâneo, subsistir no seio do velho? Um terá de morrer para que o outro renasça enfim.

Acrescentemos ainda, pois cremos que tal já se terá feito notar, que o timbre filosófico retorna com excelência aos diálogos da peça, sempre instigado pela enigmática, profunda, sóbria e implacável intervenção de Wolf – «Quem não apaga a meta não vê nada do que está entre o início e o fim» –, timbre esse que até adquire, como iremos ver de seguida, um tom profético, antecipando a renúncia maior dos Homens num tempo, ainda por nascer, de elevação conscienciosa, acto cuja consequência será o inevitável retorno à origem:

«Um dia os homens deixarão os aviões, os transatlânticos, os comboios de alta velocidade, os automóveis para regressar aos caminhos do bosque»

Será, assim, que cada caminhante deseja, mesmo que o não saiba ainda, um retorno à origem? O retomar da mais ancestral das ligações, onde criador e criação eram uma coisa só? Wolf – sempre ele – admite que o Homem optou pela via do «sacrifício mais absurdo». No entanto, ressalva: «Tem um coração e serás salvo». A sentença, tomemo-la assim, poderá antever um conotação religiosa de cariz católico, é certo. Porém, instantes depois, o teor sibilino da frase de Wolf permite encaixar melhor os sentidos exalados, e confirmar que a ruína do Homem começou no momento em que este renegou o seu berço: «O falcão deixou de contar connosco para que o ensinemos a voar».

Neste principiar de caminho, diante de um poço, assiste-se então a uma subtil preparação, principalmente interior, da viagem ao bosque que as personagens irão realizar, bosque esse que cada vez mais se descortina como estando no interior de cada um de nós. Afinal, a dita “religação”, original motivo da existência de toda a religião (note bem: religião = re-ligar), por mais deturpado que já se encontre, acontece dentro de cada um – a secreta morada do divino que tanto se busca exteriormente. Atentemos em John Wolf:

«Não tens de escutar. Tens de te escutar»

«Tu és a árvore. Tu és o sopro do bosque. Tu és o cheiro forte e amargo dos fetos. Tu és a linha de névoa flutuante. Não digas: aprendo a caminhar na escuridão. Diz somente: sou»

As partes detêm assim, no âmago que lhes assiste, a centelha da unidade, do todo. Naturalmente, haverá, na peça, uma peregrinação até ao bosque por esta altura deveras afamado, mas sublinhemos, pois importa fazê-lo, a profunda metáfora que o mesmo encarna. Assim se constata, se tamanha evidência não havia ainda ficado clara ao seu entendimento, estimado leitor, que, não obstante a simplicidade e brevidade das cenas e dos diálogos, múltiplas implicações de profundo teor filosófico podem de cada momento desta peça ser colhidos, independentemente do dito registo se manter ou não em determinados instantes da narrativa.

Jacob: (…) E se tudo não passar de um eterno retorno?
John Wolf: Não há o anterior e o posterior, Jacob. Nem o abismo e a altura. Nem o                            dentro e o fora. Por isso não tenhas medo.
Peter: Não entendo. O bosque está diante de nós.
Jacob: Vemos o bosque, mas não vemos o trilho.
John Wolf: O trilho já te viu a ti.

Afinal, não é só a criação que procura em si o criador e se estende e abre para o alcançar; o criador de igual modo aproxima-se da dita criação. Por meios mais poéticos, diremos que não basta à gota de água procurar pela corrente líquida a que pertence; terá de se abrir à mesma, de se preparar para receber em si a dita, sua criadora, que por ela, criação, busca. Tal ideia encontra aqui correspondência, assim nos parece, com o simples verso do místico Kabir, poeta que viveu na Índia durante os séculos XV e XVI, um verso frugal mas portador de uma imensa beleza: «o oceano caiu na gota de orvalho». As demais interpretações ficarão ao critério de cada um.

Cena de "O estado do bosque", teatro do Bairro Alto. Foto:Luís Santos

A cena seguinte, a quarta, O diálogo do limiar, é seguramente a mais breve de toda a peça, constituindo ainda, e somente aqui tal se verificará, um solilóquio. Mantém, como as demais, a epígrafe “diálogo” apenas por nos apresentar um diálogo do “eu para o eu”. Não fugindo ao padrão que temos vindo a desvendar, o seu único participante é John Wolf – certamente a personagem mais adequada para o preconizar.

Apesar de breve, e de serenamente intensa, passe o possível paradoxo, é das cenas mais interessantes e místicas que no presente trabalho poderemos encontrar. Nela, John Wolf, de tudo despojado, enfrenta o dia no limiar do próprio ser. Assistimos assim à transmutação da personagem, não no seu modo físico, mas a um nível etéreo – uma espécie de elevação espiritual, iluminação até, conquistada na superior entrega de tudo –, ainda que a matéria lhe sirva de palco. Vejamos:

«Esta manhã acordei vazio... dentro de mim não restava nada: nem alegria, nem dor, nem desejos, nem cólera, nem ódio, nem amor. Nada. (…) Procuro não pensar (…) O que eu sei é que de muito longe chega um sopro. (…) Lentamente sinto cair as vestes do enigma (...)»

Apesar de só, dentro de si, no desenrolar do fenómeno, Wolf encontra-se perto de Jacob e Peter, ainda junto do poço que marcou a cena anterior, mas sem que de nada de estranho se apercebam. O caminho interior somente por cada um deverá ser percorrido – não sobram dúvidas.

A cena é um sublinhar do mais simples dos estados, o mais despojado de todos: o dito vazio. A provavelmente mais famosa oração da cristandade é moldada ao acontecimento e pela personagem proferida. Testemunhamos, assim, a crucial importância do referido estado de ser num percurso de (re)encontro, de sublimação, de transformação:

«Nada nosso que estás no Nada
Seja Nada o teu Nome
Venha a nós o Nada do Teu Reino
Seja claro o Nada da Tua Vontade
Assim na Terra como no Céu.
O Nada que nos alimenta nos dá hoje
Perdoa-nos sempre que não formos Nada
Como tentaremos perdoar a cada uma das Tuas criaturas
Não nos deixes incorrer em tentação
E livra-nos de não sermos o Teu Nada.»

Notemos como o símbolo “Deus” se substitui por “Nada”, dando a esse mesmo “nada” o sublime carácter da divindade. Será, assim, possível afirmar que esse Nada é o próprio Criador? Manifestado quando o “eu”, ou seja, os impulsos egóicos do Homem, baseados em seus desejos, ânsias, receios, memórias e padrões, cessam enfim? Deixando o Divino, o verdadeiro sol, falar por ele, brilhar como nunca antes brilhou, apesar de sempre ter brilhado? Em todo o caso, após um episódio destes, jamais os momentos vindouros poderão ser idênticos aos que povoaram o passado. No limar de tudo dá-se a entrega, e a revelação acontece. Nada será como dantes.

«Espanta-me sentir que o verde-azulado da paisagem é mais belo do que alguma vez o foi. (…) Uma tranquilidade reflecte-se, na distância, como se o mundo fizesse uma pausa. O meu carreiro sobe por entre arbustos em flor. Finalmente vejo o rosto de Deus.»

Na cena seguinte, e após um momento tão elevado e revelador, Tolentino permite o assentar da poeira e retorna à linha de diálogos e processos mais simples, que como já sabemos povoa certas partes desta peça. Em O diálogo da clareira, além de nos apercebemos que estamos cada vez mais próximos do famigerado bosque, cada vez mais na iminência de testemunhar a peregrinação até ao seu âmago, introduz-se enfim a personagem Viviane Mars.

Recordamos como Peter insinuava que Jacob teria um romântico interesse em Viviane? Pois bem: aqui, numa cena desenrolada a dois, teremos a hipótese de confirmar in loco tal assumpção. Apesar de nada de significativo se passar entre as duas personagens, a teoria que defende a inclinação preferencial de Jacob poder-se-á aplicar sem restrições.

Os diálogos começam com um jogo de palavras-cruzadas entre os dois. Daqui somente se retira, mediante a futura menção de Jacob em desistir do jogo quando somente falta uma palavra para o terminar, a persistência que deverá ser cultivada por cada caminhante ou proponente a trilhar o rumo do bosque. Não obstante, findado o jogo, é Viviane que subtilmente se vai revelando detentora de uma sabedoria muito própria, peculiar, subtil e de fundas implicações: «O mundo é sobreposto e amplo» - afirmará, seguindo a ideia de que cada um, sendo o centro do seu universo, experiencia e entende o mundo de modo pessoal.

Viviane pode ser vista como a continuação do pensamento de Wolf. Pelo menos, será a personagem que sob esse aspecto dele mais se aproxima, embora o nível obscuro e enigmático do discurso baixe significativamente. Repare-se como reafirma um facto que Wolf cenas atrás havia lançado: «(...) pela primeira vez, em toda a história, uma espécie, a nossa, abandonou o seu ecossistema». Serve a afirmação de contraponto ao discorrer de Jacob, mais pragmático e cingido apenas às evidências mais cruas, sem abordar as suas hipotéticas origens: «Carregamos para todo o lado uma história (…) Fareja-se à distância a nossa carência, a falta, a solidão (...)».

Viviane, no entanto, rejeita o seu interesse na filosofia ou nas mais simples ideias de John Wolf. O seu único interesse será «que as pessoas regressem ao bosque». Esta sua incitação não será inócua, sendo Viviane uma etóloga e, como tal, o seu discurso resvalará muitas vezes para o domínio do comportamento animal em estado selvagem.        

Jacob sugere ainda que Viviane se junte a eles na peregrinação, nem que seja para lhe conceder companhia, mas Viviane afasta-se bruscamente e deixa-o, enigmática, com palavras que Jacob recebe fragmentadas, sem direito a correcção:

«A vida tem sempre razão»

Perante isto, qualquer hipótese de relacionamento romântico entre as personagens tomba logo em fundo vazio. Mas, seguindo a óptica que este trabalho nos tem apresentado, desde que momento tal questão se revestiu de crucial importância?

Ligações a esta post:
>>> Leia a primeira parte deste texto aqui.
>>> Leia sobre Estação central, de José Tolentino Mendonça aqui.
>>> Pedro Belo Clara escreveu sobre A papoila e o monge, o livro de haikus a que se refere, num tem texto dividido em três partes: a primeira delas pode ser lida aqui; a segunda aqui; e terceira aqui.

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).

  

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A vegetariana, de Han Kang

Boletim Letras 360º #604

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Seis poemas de Rabindranath Tagore