Noites insones, a imprevisível obra-prima de Elizabeth Hardwick

Por E. J . Rodríguez



Quem se aproximava pela primeira vez de Harwick ficava surpreendido por seu sotaque; não esperava encontrar quase intacto, mesmo residindo várias décadas em Manhattan, aquele inconfundível tom sulista em sua voz. Conheciam-na como a cerebral paisagista da intelectualidade urbana; boêmia habitual dos clubes de jazz e fundadora do The New Yorker Times Book Review. Conheciam-na como a iconoclasta crítica literária que revolucionou seu ofício colocando sob o microscópio – ou poderia se dizer, no cadafalso – os demais críticos de seu tempo. Conheciam-na como a “escritora que escrevia sobre outros escritores”; como a ensaísta ganhadora da medalha de ouro da Academia Estadunidense de Artes e Ciências. Como uma mente prodigiosa – “afiada como uma espada” – capaz de impressionar as demais mentes prodigiosas na mais cosmopolita das cidades. Mas ela, todavia, falava com as ondulantes vocais e as ruinosas pronúncias arcaizantes de seu Kentucky natal. E essa era a única surpresa que reservava ao mundo.

Quem havia conhecido Elizabeth Hardwick como crítica literária tampouco esperava aquela obra-prima aos sessenta e três anos de idade, nem que essa obra fosse, dentre todas as coisas, um romance. Ela era, sobretudo e para todos, uma ensaísta. É verdade que havia escrito já dois romances em décadas anteriores, The Ghostly Lover e The Simple Truth, mas as duas tentativas haviam naufragado no oceano de textos críticos com os quais havia construído seu imenso prestígio profissional. Aqueles dois primeiros romances ficaram pouco conhecidos não porque neles não estivesse presente a característica prosa bem desenhada da escritora – aquela prosa que outros compararam com facas, bisturis, até com um abrasador raio laser –, mas porque Hardwick todavia não havia se descoberto como escritora de ficção. O que, certamente, não é incomum. William Burroughs publicou seu primeiro livro aos quarenta anos. Raymond Chandler ia no caminho dos cinquenta. Deborah Eisenberg começou a escrever também em sua quinta década de vida para superar a síndrome de abstinência do tabaco – havia passado meia vida fumando três carteiras de cigarro por dia. Laura Ingalls começou a trabalhar como colunista aos quarenta e quatro anos e publicou seu mais famoso romance vinte anos mais tarde, aos sessenta e quatro anos. A única diferença é que Hardwick escrevia há décadas, publicava sobre a obra de outros e ninguém pensava já, como talvez ela mesma pensava, que pudesse, de repente e sem aviso prévio, aparecer com um dos melhores romances de finais do século XX.

Para piorar, havia vivido sempre à sombra de seu famoso marido Robert Lowell, o mais influente dos poetas estadunidenses do pós-guerra. De seus vinte e três anos de casamento ela manteve pouco mais que um certificado de ilustre consorte. Para a imprensa convencional, a agudíssima inteligência de Hardwick – a mesma que havia lhe dado uma bolsa de estudos em Guggenheim quando uma jovenzinha – e o respeito reverencial que inspirava no grêmio dos críticos pouco importava se ela podia estar sempre reduzida ao subtítulo de “esposa de Robert Lowell”. Uma esposa que havia tolerado infidelidades, caprichos e problemas mentais do homem que, como tudo que é pago, terminou por abandoná-la por outra. Hardwick também tolerou que Lowell ainda voltasse para ela quando a nova e bela mulher decidiu que estava farta das loucuras e manias do poeta; ironia do destino, ele morreu no banco traseiro de um táxi quando se dirigia ao reencontro da casa de sua querida ex-mulher, a que, havia percebido, estava há muito em falta. Lowell morreu em 1977. Noites insones apareceu, não por acaso, dois anos depois. Elizabeth Hardwick, que começava o livro dizendo “já não era um nós”, havia mudado.

Livre pela perda, era de repente uma mulher como havia sido em sua juventude. Também se tornou uma romancista livre que escreveu sua obra magna com a despreocupação de quem, sentindo que enviuvou de quase tudo, acredita estar despedindo-se da vida. Embora pouco sabia ela que sobreviveria quase três décadas a este livro (Hardwick morreu em 2007, cumpridos já os noventa e um anos); Noites insones soava e continua soando como um testamento. Era como uma pergunta sem resposta sobre a vida que Hardwick acreditava estar contemplando a partir do vazio do banco detrás de um táxi. Quem viveu de verdade? Quem é feliz? Existe alguém, em alguma parte, que não tenha perdido o tempo? De suas experiências passadas, da sabedoria vital e literária acumulada, da capacidade de seu vasto intelecto para absorver as chaves das biografias alheias, Hardwick obteve sua rara habilidade para a dissecção como o caçador que, em apenas alguns minutos, pode retirar a pele de um cervo e colocá-la pelo avesso.

Noites insones pegou desprevenido quem não aguardava já a obra definitiva de Hardwick, inesperada não por seu caráter tardio e seu grandioso brilhantismo, mas porque era uma obra sem gênero. Podia parecer uma autobiografia na qual, sem dúvidas, apenas havia informação sobre a protagonista, também chamada Elizabeth e também natural de Kentucy e que, na verdade, passava o livro deixando que os protagonistas fossem os demais. Como quem folheia um álbum de velhas fotografias e nelas aparecem rostos de outras pessoas – quase à maneira de Proust, mas com muitíssima brevidade e concisão –, a escritora sobrepôs memória após memória, quase como num sonho.

E, como num sonho, fala das coisas mais inesperadas. De sua relação com um amigo gay com quem desabafava, segundo suas próprias palavras, um mariage blanc, um “casamento branco” em que não havia sexo, mas carinhos, brigas e reconciliações. Dos clubes de jazz. De como se sentia ante a imensa presença de Billie Holiday quando a visitava em seu apartamento – num daqueles apartamentos decorados à maneira caribenha, lugares sempre transitórios –, vendo-a fugir por trás de uma porta para se entregar aos rituais secretos de seu vício por heroína. Também fala de empregadas domésticas consumidas pelo câncer, de burgueses europeus prisioneiros de uma rotina confortável e infeliz, de sedutores natos com voraz apetite carnal que decidem acabar com a vida sem motivo aparente sob uma interminável série de conquistas, de casamentos conformistas cujas casas são como mausoléus com “lápides com um nome à espera de ser gravado”. As personagens não são personagens, são pessoas que vivem com frequência na insignificância e no sem-sentido, e que depois adoecem e morrem. Com a metódica neutralidade de uma bióloga estadunidense que estuda as formigas, Elizabeth Hardwick retrata a fugaz futilidade da existência humana num livro que bem poderia tido outro título: A insuportável leveza do ser. Sem sensacionalismo, sem melodrama, mas também sem algodões, descreve as vidas alheias sem dizer quase nada sobre sua própria vida. Acredita que o leitor é inteligente e por isso deixa que ele entenda o que ela não necessita contar sua vida, como tampouco uma bióloga não se colocaria ela própria sob sua lupa.

Noites insones é, pois, um tratado sobre o ser humano. Nele, inclusive, mais que em seu trabalho como crítica literária, o formidável estilo de redação de Hardwick – hoje, uma década depois de sua morte, considerado entre os dos melhores prosadores estadunidenses – se converte numa ferramenta não só artística mas também cirúrgica. Cada palavra é escolhida como sumo cuidado e situada no lugar indicado para criar um determinado efeito. Às vezes se compara Noites insones com Tristes trópicos de Lévi-Strauss ou mesmo Moby Dick de Herman Melville (sobre quem Hardwick escreveu uma célebre biografia). Inclusive se poderia compará-la com Vladimir Nabokov por sua brincadeira enganosa com a primeira pessoa e sua disfarçada crítica social. Mas, para mim, tem ainda o vibrante impressionismo de Joseph Conrad; Hardwick, não poucas vezes, descreve uma coisa sem ainda tê-la apresentado, tal como fazia Conrad, para situar o leitor num determinado registro emocional antes que este saiba sobre o que está lendo. Conrad, recordemos, pensava suas histórias em sua língua de origem, o polonês, para redigi-las mentalmente em francês, língua que dominava desde jovem e, por fim, com grande esforço, escrever em inglês, porque o inglês era o idioma de seus editores e leitores. O resultado deste processo que o escritor descrevia como uma tortura é, paradoxalmente, uma prosa ágil e envolvente cuja perfeição assombrava os seus contemporâneos, incrédulos ao descobrir que o virtuosismo do literato mais admirado na cena britânica provinha de um imigrante polonês cujo inglês falado era, segundo os que o conheceram, “atroz”. Lendo Conrad parece que escrever era coisa fácil para ele, tal como respirar. O mesmo acontece com Dostoiévski, quem também, apesar de ser fácil de ler, descrevia o processo de composição como um pesadelo. O mesmo também acontece com Elizabeth Hardwick. O resultado do seu trabalho em Noites insones é muito parecido com o de Conrad: frases cuidadosamente estudadas e parágrafos cuja arquitetura nunca poderia ser modificada sem destruir o equilíbrio do conjunto.

A demonstração de que existem caminhos diferentes se fazia com maestria, e por isso é que Conrad escreveu seus melhores romances martirizando-se porque ele próprio percebia como uma imperativa necessidade de responder ao seu enorme prestígio literário, enquanto Hardwick escreveu Noites insones sem se importar como o mundo receberia seu livro. Por isso, rompeu cânones, misturou estilos e perdeu o medo de não atender as expectativas que queriam dela. Suas décadas de exercício como aguda anatomista da literatura feita pelos outros deram por fim fruto num livro que só podia nascer como filho de um casamento entre a sabedoria acumulada e a melancólica liberdade de quem já não acredita dever nada a ninguém. Como os lenços da série negra de Goya ou os últimos discos de John Coltrane, Noites insones é uma obra que a autora fez para si mesma, como se pensando em voz alta; talvez por isso contém aquilo que nenhum livro escrito para os demais poderia conter: o atrevimento de olhar a vida nos olhos, interrogando-a, e a honestidade de admitir que a vida não devolve o olhar e jamais contesta perguntas. A vida, sensivelmente, passa. Mas, temos a sorte de que algumas pessoas tiveram a habilidade de capturar em seus escritos sua estranha essência.

* Este texto é uma tradução de “Noches insomnes, la imprevista obra mestra de Elizabeth Hardwick” publicado em Jot Down.

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