O esforço de assimilação em Pastoral americana
Por Rafael Kafka
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Philip Roth. Foto: Philip Montgomery. |
Em seu
Modernidade e ambivalência, Zygmunt Bauman fala de regimes totalitários, em
especial o nazismo movido por ideias de pureza racial, como um sistema de
pensamento ligado à ideia moderna de homogeneidade. Para o pensador polonês,
sistemas como o nazismo encontram suas fontes nos ideais de harmonização de
intelectuais como Kant, obviamente em uma interpretação motivada por
ressentimento, complexo de inferioridade e desespero.
O nazismo e
outros totalitarismos, inclusive o soviético, são formas de eliminação do
outro. O desejo aqui, mesmo que contido apenas no campo da ideologia mais rasa
para disfarçar interesses mais profundos, é criar um ambiente social em que a
ambivalência não existe, a contradição e o choque de ideias deixem de ser uma
problemática para os sistemas políticos. Nesse sentido, elementos como o
nacionalismo, já tão destacado por Stuart Hall em seu curto, porém seminal, A identidade cultural na pós-modernidade”, são formas que o sujeito encontra de
fugir de um mundo fragmentado e dividido.
Bauman tece
críticas as quais confluem para um pensamento exposto por Thomas Mann em Doutor Fausto. O paralelo entre a venda da alma ao demônio e da entrega do
país ao governo nazista são claros. Uma nação destroçada física e
psicologicamente pela guerra mundial busca num ideal com aparência forte uma
chance de se reerguer e se redefinir plenamente. Adrian Leverkun mais do que
talento ganha do diabo em seu delírio a oportunidade de saber quem é, um
pianista talentoso, mesmo que para isso ele sucumba a crises nervosas e à morte
precoce.
A ilusão de
definição é algo que empodera o sujeito, ou antes dá a sensação de
empoderamento, de paz existencial. Somos, como diria Sartre, ser-para-si, ser
que é o que não é não é o que é. Somos um constante desnível e viver é uma
constante angústia. Bauman, Sartre e Mann são intelectuais os quais focam em
suas obras a necessidade de engajamento consigo e com o mundo no caminho da
liberdade. Philip Roth, em Pastoral americana, decide fazer uma reflexão
reversa para defender o mesmo ponto e parte da história de Syemour Levov, ou
antes o Sueco Levov, para contar a história do sujeito que vivendo na era
pós-moderna ainda assim decide se prender a um essencialismo nacionalista.
Aqui é
interessante citar outro dado curioso mostrado por Bauman em Modernidade e
ambivalência. Conforme o nazismo ganhava força dentro da Alemanha, muitos
judeus passaram a assumir um esforço de assimilação para com os ideais
nacionalistas que passavam a se tornar mais intensos no cotidiano alemão.
Várias comunidades judaicas mais ao leste do país passaram a sofrer com visões
estereotipadas dos colegas do oeste sobre suas condutas em clara rejeição de
judeus que não eram alemães o “suficiente”. Uma forma que os judeus judicativos
encontraram para não serem dizimados era se passar o mais perfeitamente
possível por germânicos, mas há um paradoxo evidente nessa conduta.
Homi Bhabha
fala em O local da cultura da mímica, o modo como o colonizador enxerga o
colonizado agindo. A impressão é de que todo o esforço deste último em agir de
acordo com a cultura dominante é uma imitação desajeitada, uma forma de fuga eu
fracassa por si só. O colonizador é julgado por ser demais colonizado ou por
querer fingir demais não ser colonizado. Bauman reforça isso nos textos em que
analisa o esforço de assimilação de membros da comunidade judaica e nos faz
entender bem porque Sartre, em A questão judaica, diz que o primeiro passo
para o judeu vencer sua condição é se assumir enquanto judeu.
O judeu era
uma criação do nazista e o enfrentamento a opressão viria justamente no
aceitar-se enquanto judeu para romper com a visão essencialista e pensar em
formas de resistência. Nesse sentido se entende, por exemplo, o título de um
belo documentário produzido nos últimos tempos, “Eu não sou seu negro”, uma
forma de afirmar que o “negro” é uma criação do opressor americano. Dizer que
não se é esse negro não significa não dizer que não é negro: é uma assunção de
liberdade, uma retomada de sua própria condição nas mãos para definir com mais
poder seus rumos.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhxvxlN4nKx3W5i9_SrjSXEa675J20AH0LSTGGKUQeY145_PxuWZrs-H49bPh3tpoVUWELgwAMRixvJPZohr9umMIOH1bVJXBdjsb1Z0ptuO7Qodpc6GVYPTqettljE12kDhT0wlBneRVg/s640/91PvWwyTD7L.jpg)
Seymour Levov
tem sua narrativa em primeira pessoa por um amigo também judeu. O apelido
“Sueco” se liga a uma aparência singela típica do país nórdico e sua existência
é marcada pelo claro desejo da comunidade judaica de sua cidade em vê-lo como
um herói pelo seu desempenho no futebol americano. Levov, no culto que recebia,
fazia com a comunidade judaica esquecesse de sua condição de exclusão, de
perseguição em diversos locais do globo ao longo da história humana. Levov é a
concretização do esforço de assimilação mesmo de forma inconsciente, pois para
ele o importante é agir, jogar, vencer.
Após uma
breve carreira como atleta, assume o negócio de produção de luvas para senhoras
do pai e passa a ter um discurso tipicamente liberal. Roth aqui cria um
discurso literário dinâmico e ao mesmo tempo profundo que muitas vezes emula o
léxico enfadonho dos que se pretendem empreendedores de sucesso e a vida de
Levo a priori parece a coisa mais banal e corriqueira do mundo, a típica vida
do cidadão americano que decidiu seguir à risca a pastoral do sonho americano.
Todavia, há
um elemento de ruptura na vida de Sueco: a filha Merry. Ela que desde criança
sofre com uma torturante gagueira um belo dia decide explodir uma bomba para
criticar o seu país contra o assassínio de populações inteiras no Vietnam. Ela
depois some pelo mundo e Sueco passa de todas as maneiras a procurá-la e diante
de nós temos uma história que se encaminha para o futuro e o passado em
diversos momentos, com fatos que parecem um grande quebra-cabeça nos fazendo
entender o contexto de Maio de 68 na América do Norte e o desejo de Syemour em
viver uma vida homogênea, moderna.
Levov é um
judeu que emula perfeitamente o discurso cristão americano. Ele é um desnível
étnico flagrante, mas ainda assim leva a vida com um discurso profundamente
homogêneo, fechado, linear. Levov pensa apenas em levar uma vida normal de
grande capitalista e diante da rebeldia da filha consegue apenas pensar no
porquê ela teria feito aquilo. Percebemos claramente em suas reflexões uma tentativa
determinista de encontrar causas, de desvendar o que levou a sua filha àquilo
tudo.
Falta ao
Sueco a visão da liberdade humana. Merry fez o atentado não porque foi levada
ao ato e sim porque o escolheu. Diante de um contexto de opressão e de
construção de corações e mentes, Merry escolheu colocar a bomba em uma pequena
venda e no processo matou uma pessoa. Nada disso tem ligação causal com a vida
cheia de facilidades que teve ou com a revolta da gagueira. Mas o Sueco parece
não entender isso.
Há uma cena
clássica de Fargo, a série inspirada no filme dos irmãos Coen, em que o
narrador Loe Solverson questiona o que teria levado Hanzee, fiel escudeiro de
uma família de criminosos, a se voltar contra os ex patrões. A resposta pode
ser, e provavelmente é, simplesmente: ele quis. As razões que depreendemos daí
são razões livremente analisadas e escolhidas por Hanzee – e Merry – dentro das
situações apresentadas. Afinal Merry poderia simplesmente ver a guerra como um
fato não ligado a ela e os gestos rebeldes dos jovens como mais uma
inconsequência tola de quem tem complexo de Messias – e Hanzee poderia seguir
na sua posição, mas o poder parece ter soado delicioso para ele num átimo.
Falta ao
Sueco e à boa parte das pessoas a noção de que a liberdade é a essência humana.
Não devemos cair aqui em discursos que aproximam pensadores como Bauman e
Sartre de uma moral do empreendedor destemido – Leandro Karnal, mesmo tendo
diversas reflexões interessantes, parece adorar esse caminho. A liberdade de um
jovem preto da favela ainda existe, mas presa a muito mais barreiras do que o
jovem que nasceu em um bairro de elite cercado de conforto por todos os lados.
Devemos focar nos elementos que ferem a liberdade humana sem ter um olhar
determinista da mesma.
O que
liberais e sujeitos de esquerda parecem esquecer muitas vezes é isso. A
economia por si só não é o único objeto de análise e a vontade não é o único
fator que importa. Tirando isso, parece faltar ao Sueco em sua visão liberal do
processo que a realidade não é um grande plano e que as escolhas dos
indivíduos, inclusive o terrorismo, podem ser simplesmente atos de vontade
focados em formas diferentes de ver a realidade. Provavelmente vivendo em um
meio focado na ética do livre mercado, Levov tenha esquecido que a vida é cheia
de desníveis e nem tudo é rebeldia momentânea e sim uma outra forma de ver a
realidade.
O que
diferencia, talvez, Levov dos sujeitos fazendo esforço de assimilação na
Alemanha pré-nazismo é a sua falta de consciência desse processo de ruptura que
é típico de nossa realidade da modernidade tardia. Levov como um bom americano
com comportamento padrão realmente defende os ideais por ele vividos sem se
perceber como sujeito excludente. O ato da filha é uma ruptura em um universo
fechado e harmônico que não voltará mais a ser o que era, algo que certamente
torna o desespero de Levov algo mais acentuado. Afinal, ao contrário de
Leverkun, ele não tem como fazer um pacto com qualquer forma de pensamento,
para criar o artificialismo de um falsa harmonia.
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