Por Juliano Pedro Siqueira
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Jonathan Littell. Foto: Evgen Kotenko |
O mundo comemora de forma bastante
tímida os oitenta anos da vitória dos Aliados sobre a Alemanha nazista. Um
passado não tão longínquo que deixou sobre a terra — além dos resquícios de uma
maldade latente — um pressentimento de que tais atrocidades podem nos sobrevir
numa escalada ainda mais sangrenta. E a literatura foi um instrumento visceral
e imprescindível ao retratar o período da Segunda Grande Guerra, arrecadando
vasto material manuscrito, inclusive, de autores que registraram, astutamente,
em diários e ofícios clandestinos, os horrores do front e os bastidores
infernais, tornando-os testemunhas fidedignas.
Depois das experiências espinhosas
com
Arquipélago gulag, de Alexander Soljenítsin,
Vida e destino,
de Vassili Grossman e alguns volumes de
Os contos de Kolimá, de Varlam
Chalámov, pensei que tivesse consumido o que tinha de mais visceral e
arrebatador sobre literatura de guerra. Enganei-me! Relatos perturbadores
reforçam a crueldade perpetrada pela máquina genocida dos regimes totalitários
contra a vasta e indefesa população civil. É profundamente lamentável que os
crimes contra a humanidade não se findaram com o Holocausto judeu.
Na sequência da derrocada dos
alemães, diversos genocídios foram praticados, legando à história dos homens,
um espetáculo cadavérico. Coincidência ou não, os autores russos supracitados
eram ativistas, jornalistas e voluntários que acabaram vítimas desse processo
autoritário ao fazerem da escrita ato de resistência contra injustificáveis e
abjetos crimes. Homens que sofreram consequências irreversíveis quando
decidiram se opor ao poder, autoritariamente estabelecido, tornando-se inimigos
públicos, cujas obras foram confiscadas e censuradas, vendo a própria
existência ser reduzida ao cárcere.
Nesse contexto, em 2019,
deparei-me com um fenômeno da literatura francesa, o autor norte-americano
Jonathan Littell, cuja obra colossal,
As benevolentes, um romance voltado
às memórias de guerra. Jonathan vive na França, mas poderíamos afirmar que se
fez uma testemunha ocular desses campos de batalhas, pois nada escapa do seu olhar
perscrutador, crítico e detalhista.
Entrementes, o autor de
As benevolentes
sequer nasceu à época dos respectivos fatos históricos, muito menos teve contato
com algum ex-combatente de guerra ou ex-oficial nazista que pudesse subsidiá-lo
de robustas informações a ponto de dar vida a uma narrativa tão crua e vil,
como o fez em seu trabalho, grandiosamente premiado. Sua empreitada romancista
foi um verdadeiro garimpo documental, tamanha riqueza de informações,
terminologias, linguagem codificada, logística, conhecimento de projetos
arquitetônicos, de engenharia, administração e funções militares — que vai do
soldado raso ao oficial mais próximo do Führer.
Poder folhear as densas páginas da
obra é mais que uma experiência literária. É abrir os portais do inferno e
viver junto ao narrador o macabro conforme galga patamares estratosféricos na
hierarquia da SS. A violência ganha proporções mais sofisticadas e menos braçal
à medida que as estratégias tomam desenvoltura e celeridade. Raramente um livro
me abalou tanto quanto
As benevolentes — de certa forma, abalo físico —
tamanho realismo dos acontecimentos descritos a ponto de me sentir transportado
àquela dimensão brutal, gélida e avassaladora.
O narrador, que descreve os fatos
em primeira pessoa, cria um minucioso, longo e sinistro monólogo em torno de
sua vida pregressa na condição de ex-oficial da SS. Depois de aderir a uma nova
identidade e levar uma vida modesta e discreta como empresário, resolve
compartilhar os horrores que praticou e colaborou, decisivamente, no extermínio
de inimigos políticos, judeus e outras minorias. Jonathan Littell deu vida a um
personagem altamente complexo em sua constituição psíquica, moral e social.
Trata-se de um carrasco que ora narra os fatos sob sua ótica, sem que ninguém possa
contestá-lo — pois fala enquanto aquele que saiu triunfante e impune às leis
humanas pelo seus atos —, ora deixa subentendido no sofrimento perturbador,
encontrando, no próprio discurso, a única forma de exorcizar seu passado
ignominioso.
Nas primeiras linhas, percebe-se um
desejo urgente de expelir das entranhas, o mal que foi gestado durante anos,
não suportando mais as dores lancinantes que o oprime. Ao propor narrar sua
escabrosa história, ignora o julgamento alheio, sem demonstrar nenhum peso
moral ou constrangimento. E assim o fez, ao compartilhar nas mais de 800
páginas, relatos vivos, crus, asquerosos, produzindo reações aviltantes no
leitor que, muito provavelmente, lançaria mão da obra, para nunca mais tocá-la
sob quaisquer circunstâncias.
É impossível lidar com a
ambivalência que cinge o protagonista narrador, sem despertar ódio por ele,
mesmo sabendo se tratar de uma ficção. Por ora, o mesmo protagonista pode,
mesmo que de forma contestável, despertar o mínimo de admiração por sua intrepidez
ao expor as mazelas que deveriam apodrecer juntamente ao seu túmulo. Trata-se
de uma leitura que exige fôlego — não apenas esforço físico, devido ao grau de
dificuldades pela imensidão de nomenclaturas e pronomes de tratamento,
propositadamente em alemão (sem tradução) —, como também estômago e certa
frieza para suportar a inescrupulosidade do dito carrasco que não suaviza ao
esmiuçar e escancarar episódios sangrentos, da intimidade sexual e da violência
sádica praticada, ao bel prazer, pelos oficiais da SS.
Maximilian Aue — esse é o nome do
protagonista — é um jovem francês que avançou na carreira militar, numa
velocidade apoteótica, chegando a executar cargos estratégicos, que lhe exigia
grande destreza. Nota-se, por intermédio da sua subjetividade, tratar-se de um
carrasco narcisista, sádico, porém tomado por profundos remorsos e culpas, o
que logo nos remete ao personagem de Dostoiévski no conto “O sonho de um homem
ridículo”.

Após recusar o pedido mendicante
de uma garotinha faminta em meio ao relento da neve, chega em casa disposto a
executar o plano de tirar a própria vida, porém não consegue fazê-lo, pois sua
mente está fixada na imagem da menina, como se algum nível de moralidade
tivesse tomado sua consciência, exigindo-o a expiação de seus atos. Essas
características, no mínimo curiosas, refletem decisivamente a personalidade
ambígua e relutante do narrador, provocando febris conflitos entre seus sentimentos
pessoais e a frieza que precisava possuir para executar suas missões nada
humanas enquanto fiel signatário nazista.
Entretanto, o que deveria ser
apenas o relato minucioso de serviços burocráticos em nome da horda de cruéis e
obstinados idealistas políticos, é na vida pessoal do carrasco que a obra ganha
destaque e dramaticidade: tinha profundos laços desajustados com seu núcleo
familiar. Após o desaparecimento do pai, supostamente morto na guerra, culpa a
mãe por não esperar seu retorno, vendo o pai substituído por outro amor, o seu
rejeitado padrasto. Fadado ao egoísmo, nunca perdoará a mãe por tal decisão,
mesmo depois de sua morte.
É um tanto quanto surpreendente
saber que o protagonista carrasco nutre um desejo incestuoso pela irmã. Por
isso, reiteradas vezes, é atormentado por fantasias eróticas agressivas, imagens
que envolvem carícias sobre o delgado corpo até excitações por meio do
defloramento.
Ainda, o passado desse carrasco
vai muito além de orquestrar técnicas de extermínio em massa, em tempo recorde,
como se faz em logística em indústria de laticínios. Suas memórias, frustrações
e amarguras delimitam sua trajetória como homem e oficial nazista. Sua história
é marcada por delírios e sensações de morte contínua — oriunda (a história) de
um passado de rejeições e ódios —, o que fortalece as suas fantasias recalcadas
e desejos obscuros, satisfeitas em práticas sodomitas, excesso de álcool e acessos
de fúria.
Em vários momentos — intercalados
em novas estratégias de avanço nas batalhas campais e descansos momentâneos —,
às vezes em meio aos escombros, o narrador revela sua natureza fria e desprezível
ao aliciar e sodomizar soldados mais jovens, usando-os como objetos de seu
desejo ignóbil. Cada estágio ou fase das diversas operações em que participa,
decisivamente, busca em sua sexualidade egoísta e na embriaguez desmedida, a
fuga e o alívio do fardo que deseja se furtar.
O carrasco vive momentos de
tormento pessoal, mas não pode deixar transparecer uma única fagulha de
autocomiseração. Os extermínios e a impiedosa crueldade em que se davam as mortes
causam-lhe mal-estares terríveis. Por quase toda a obra, o narrador padece de
uma espécie de fisiologismo ou patologia moral. Muito comum nos personagens
niilistas e materialistas — retornando à literatura russa — de Dostoiévski, a
exemplo do emblemático Raskolnikov, em Crime e castigo, quando passa a
extensão da obra sendo acometido por terríveis abalos nervosos e estados febris
delirantes. Sintomas de uma culpa que dilacera o corpo e irrita a alma. Uma
moral que mesmo quando há recusa num plano metafísico, passa a alfinetar a
consciência do indivíduo até lhe penetrar em camadas profundas do ser.
As reações fisiológicas de
Maximiliam são justamente do homem que tenta esconder atrás da sua liderança
militar a culpa que o castiga nos momentos de solidão. O personagem acumulou na
vida pessoal sucessivos fracassos, nas investidas de reconexão familiar,
restando a diversão sobre homens cadavéricos e famintos que lambiscavam suas
imundas botinas. Um engrandecimento vazio e inútil que lhe provoca mais agonia.
Seu mal-estar físico tem estirpe moral! Uma moral que quanto mais se resiste,
em nome da lealdade deferida ao Führer, mais revira suas entranhas, provocando alucinações
e acessos de fúria.
O título da obra desperta muita
curiosidade por parecer uma péssima contradição ou gratuita provocação, já que
de benévola, nada possui. O título é extraído das entidades míticas, das
grandes narrativas da mitologia grega. As benevolentes ou as Erínias eram
figuras ligadas à vingança. Divididas em três, cada uma se incumbia em punir os
mortais por seus crimes. Elas puniam os malfeitores da terra. Eram verdadeiras
Fúrias prontas para vingar e castigar o derramamento de sangue pelos
assassinos, atormentando-os no submundo dos mortos, contemplando seus pecados,
incessantemente expiados. Para saber a relação do título com a obra, é preciso
se lançar na aventura sombria e cingida por horrores, uma vez que nem o autor a
revelou.
As benevolentes
dificilmente se vale de resenhas com explicações fáceis e guias de leitura. É
uma obra que corta na carne dos leitores e fatalmente os farão se sentir parte
da história, corroborando a verdade de que se trata de um monólogo que nega a
imparcialidade ou a indiferença do público. Seja para despertar uma
contraditória e perversa identificação com o protagonista ou para condená-lo ao
submundo dos mortos por cada episódio sinistro evocado por ele. Definitivamente,
não há margem para neutralidade. Mergulhar nos meandros da personalidade conspurcada
do carrasco — e nas doses minguadas da sua piedade — é preciso se despir de
quaisquer preconceitos e sentimentalismos.
O trecho a seguir tem um caráter
revelador e ambíguo, não penas do personagem e carrasco Maximilian Aue, mas de
todos aqueles homens que se entregaram à matança em série como ferozes
predadores. Durante o espetáculo da carnificina, é inegável o despertar da
reflexão de ordem moral, mesmo sendo frios e indiferentes ao cenário dantesco.
Já o juízo de valor sobre a descrição abaixo, que cada leitor o faça como bem
lhe apetecer:
“Por mais brutalizados e
acostumados que estivessem, nenhum dos nossos homens conseguia matar uma mulher
judia sem pensar em sua mulher, em sua irmã ou sua mãe, ou matar uma criança
judia sem ver seus próprios filhos à sua frente diante do fosso. Suas reações,
sua violência, seu alcoolismo, as depressões nervosas, os suicídios, minha
própria tristeza, tudo isso demonstrava que o outro existe, existe como outro,
como humano, e que nenhuma vontade, nenhuma ideologia, nenhuma montanha de
estupidez e álcool é capaz de romper esse laço, sutil mas indestrutível. Isso é
um fato, não uma opinião.”
A brutalidade desmedida e até
automatizada é capaz de tornar esses homens ainda mais embrutecidos e bestiais,
mas não absolutamente desalmados no sentido de serem desprovidos de senso moral
ou exame de consciência. Tais violências e mortes surtem um efeito catártico
sobre esses selvagens, mesmo na ausência de confissões públicas ou abandono das
práticas infames. Na consciência de cada homem estabelece-se um tribunal sob o
reflexo do olhar agonizante e dos corpos mutilados por ódio. Humanos que expõem
um painel de rostos familiares, repletos de ternura e terror, simultaneamente.
A persistência e gozo pela morte não culminam em glória coletiva, muito menos,
individual, restando-lhes a loucura, o suicídio, ou então, a sentença e a vingança
das Erínias, as quais derramam sua ira e fúria, caçando assassinos cruéis,
cujas mãos, voluntariamente, derramaram abundante sangue alheio. Sendo, na
mesma medida, julgados e torturados pelas terríveis e infalíveis Benevolentes.
Tenho apenas a dizer que em
matéria de romance de guerra, As benevolentes ganha importância maior
entre tantas outras obras do gênero. Não por narrar detalhadamente momentos da Segunda
Guerra, como a Batalha de Stalingrado, mas pela profundidade psíquica e moral com
a qual o narrador é continuamente confrontado diante da própria história
pessoal. Um monólogo indigesto, terrivelmente brutal, mas fidedignamente
discorrido, sem falso moralismo. Diante de tamanhos desafios, digo que vale se
dedicar à leitura por ser mais uma obra que entrou para a galeria dos grandes
feitos da literatura de guerra, que mantém — mesmo em baixa temperatura — viva
às memórias de um passado que ainda nos assombra, e que precisamos,
urgentemente, enfrentar com extremo rigor, seriedade e impavidez.
______
As benevolentes
Jonathan Littell
André Telles (Trad.)
Alfaguara, 2007
912p.
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