Manuel Antônio de Almeida



A obra de Manuel Antônio de Almeida está circunscrita no período que a histografia literária tem concebido como Romantismo. Acontece que, como é recorrente em quase (para não dizer em todas) as épocas literárias que importamos dos moldes europeus para uma compreensão sobre a formação de nosso cânone, a filiação é um pouco degenerada. E os motivos são vários: desde sempre, os criadores, mesmo aqueles ainda extremamente apegados à dicção europeia, acabaram por imprimir traços únicos e variáveis só possíveis de adquiridos pela vivência num contexto como o nosso.

Acontece que, no caso do autor de Memórias de um sargento de milícias, essa diferenciação fica ainda mais evidente. E, para isso terá contribuído um dos preceitos fundamentais da estética à qual filiam: a prevalência da individualidade e da liberdade criativas. É claro que o leitor encontrará na obra desse escritor estreita relação com os modos de ver de outros escritores europeus anteriores: o interesse pela história e pela situação social dos indivíduos, bem como o interesse por evidenciar sua biografia como resultada das relações que estes mantêm com o ambiente não está fora do espectro de sua presença.

Agora, o apego pelo objetivo, no sentido de uma simplicidade na retórica – trabalho com a escrita que a aproxima dos mesmos tons da crônica, pela atenção dedicada ao factual – isso parece ser uma de suas qualidades intrínsecas. Não é gratuita, portanto, a filiação proposta por Antonio Candido, de Manuel Antônio de Almeida à tradição do romance picaresco, visão sobre a qual o próprio crítico se interrogaria mais tarde. Não afeito a aprofundamentos psicológicos e mais ao comezinho, o crítico literário sublinha que o escritor se limitou tanto no espaço geográfico quanto social: “ficou no Rio do primeiro quartel do século XIX, no ambiente  popular de barbeiros e comadres, de que se ia diferenciando a nossa vaga burguesia, e fora da qual só restava a massa de escravos e o reduzido punhado de recentes cortesãos.”¹

A vocação de cronista da capital imperial, ou melhor da zona periférica do paço real, é, entretanto, moeda de grande valor para a literatura produzida pelo escritor que aí nasceu e cresceu, aí se formou em medicina sem nunca exercer a profissão preferindo o jornalismo e as letras, e daí só saiu quando foi morrer em Macaé, litoral do estado, no acidente com o navio Hermes. Na introdução que escreve para as Memórias..., Mário de Andrade, recupera uma observação dos biógrafos de Manuel Antônio de Almeida: este “só se formou em medicina para abandonar a profissão”.

Antonio Candido, no seu livro O Romantismo no Brasil destaca que a poesia de Manuel Antônio de Almeida “é um certo amoralismo tolerante e alegre, capaz de enxergar o outro lado de cada sentimento e de cada ação, de maneira a apagar a divisão entre o bem e o mal, tão respeitada pelos românticos.” Para o autor, foi ele um “realista antecipado”.

Sua obra completa é extremamente breve – viveu só trinta anos: deixou, ao que se sabe, um só romance, Memórias de um sargento de milícias; uma peça de teatro, Dois amores e uma série de textos publicados entre 1851 e 1858 em jornais como O Correio Mercantil, algo em torno de três dezenas de pequenas histórias, ensaios, poemas e crítica literária, além de cartas trocadas com nomes como José de Alencar, material que foi disponibilizado pelo trabalho de Bernardo de Mendonça em Obra dispersa.

Destacou-se, como desconfiará o leitor, com o seu único romance, feito sem quaisquer pretenciosismos. Antonio Candido, também no referido O Romantismo no Brasil, repara como essa é uma obra marginal, porque desligada das modas em voga: o autor, diz, “não pertencia aos grupos literários predominantes”, “não parece ter querido a princípio escrever uma narrativa estrutura, mas apenas ir contando cenas e episódios da vida popular do Rio de Janeiro nos anos de 1810 e 1820” e “como bom jornalista, tinha golpe de vista para perceber o traço pitoresco dos costumes”. 

E o valor de sua obra é de nos oferecer um rico afresco de período que passaria perdido se não fosse seu interesse pintá-lo. Seu único romance reveste-se da estrutura de folhetim, formato aparecido pela primeira vez – foi entre 1852 e 1853 que os capítulos apareceram no suplemento “A Pacotilha”, do jornal aqui já referido. A história de Leonardo, entretanto, finda por nos oferecer, além de imagem de seu tempo, uma compreensão sobre o tipo brasileiro, educado meio pela circunstâncias casuais e que se atreve a existir graças à peripécia, o acordo costurado pela cordialidade com o poder, ou o que se define, à primeira vista, como picardia.

Leonardo, como tipo, se constitui, aliás, no protótipo do malandro brasileiro, tal como definiu Antonio Candido na leitura mais singular e interessante sobre o romance de Manuel Antônio de Almeida – “Dialética da malandragem”, ensaio apresentado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo em 1970. É este texto que o crítico brasileiro se dedica ao trabalho de desconstruir o conceito muito difundido a partir de Mário de Andrade e cujas bases foram costuradas pela leitura de Josué Montello; ao conceito de picardia, saído da grande tradição espanhola, prefere compreender a personagem de Memórias de um sargento de milícias como “o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil.”

Mesmo inocente aos olhos de nosso tempo, as peripécias de Leonardo se apresentam como um contraexemplo social num tempo integralmente pautado na sisudez e nos interesses das boas ações de salão.  Talvez por isso, a obra tenha levado certo tempo para ganhar algum respaldo entre os leitores mais e menos exigentes; apesar de levar a cabo toda sua edição em folhetim, sabe-se que então foi praticamente ignorado, mesmo tendo se utilizado de uma prodigiosa “diversidade de iniciativas editoriais”, como destaca Bernardo de Mendonça na introdução de Obra dispersa. Contribui para o silêncio o anonimato do autor que preferiu não revelar-se enquanto transcorria a publicação dos folhetins. Memórias saiu em 1854, o primeiro volume, e no ano seguinte, um segundo volume; o autor preferiu continuar no anonimato: os dois tomos são assinados com o pseudônimo “Um Brasileiro”. Só mais tarde recebe atenção da crítica que passou então a compreender que estava diante de uma obra precursora do que ficará conhecido com José de Alencar e Machado de Assis como romance urbano.

Na conclusão de “Manuel Antônio de Almeida: o romance em moto-contínuo”, Antonio Candido destaca o escritor pelo epíteto de “admirável contador de histórias”; e já sabemos que, para um bom escritor talvez nada mais seja necessário. Nem tudo, entretanto, são fábulas. Seu olho objetivo deve nos dizer mais verdades que os registros históricos desse tempo; não seria, logo, um exagero dizer que a leitura de Memórias de um sargento de milícias é uma boa oportunidade para reencontrar com o país que fomos e somos. Prenunciador do realismo, sua obra é uma visão direta da sociedade de seu tempo que já agora nos acena como explicação para as situações determinantes de nossa identidade.


Notas 

1 A referência é ao texto “Manuel Antônio de Almeida: o romance em moto-contínuo”, de A formação da Literatura Brasileira.

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