Miacontear - Maria Pedra no cruzar dos caminhos

Por Pedro Fernandes





Já foi dito que “Maria Pedra no cruzar dos caminhos” está mais para uma não-história da personagem-título, esta que se debanda de casa e se aloja à beira da estrada de saia levantada à espera de algum homem que rompa sua virgindade. Mas, será?

A primeira leitura desse conto de O fio das missangas suscitará mais dúvidas que respostas. Afinal, o qual motivo reside na atitude de Maria Pedra? Alguma possessão? Transgressão? Ou a necessidade de libertação sexual do corpo guardado à espera de “desencaminhamento” de sua donzelia? Sabemos que essa mulher provém de uma família problemática - tem uma forte ligação com a mãe, é verdade, a única capaz de socorrê-la nesses estágios de insensatez, mas o pai, é um débil, largado “num canto da sala”, “o homem vivia entre o vazar de garrafa e o desarrolhar de outra garrafa”. Pelo sim, pelo não, o conto nos sugere, até seu desfecho, os dois percursos de leitura. E a leitura por uma das vias parece não dar contas do jogo metafórico evocado pela narrativa. Algumas perguntas então podem ser feitas numa releitura do texto. Tipo: quais sentidos, por exemplo, estão nesse nome Maria Pedra?

A alcunha dessa Maria - nome comum, nome materno, de traço sagrado - sugere uma aproximação expressiva com outra pedra. A do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade - “no meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho...” A corriqueirice do nome e a da pedra no meio do caminho, nesse conto, a própria Maria Pedra, me permitem a construção de um paradigma de leitura. O nome materno “Maria” está para a maternidade de África, mãe da humanidade, de pernas abertas no meio do mundo entre os fluxos dos movimentos de colonização e que, apesar de tudo, permanece virgem, como a personagem miacoutiana que ao voltar para casa depois de toda a sorte de perigos a que esteve exposta, ainda assim permanece sã. E “Pedra” está para esse “obstáculo” no meio do caminho que resiste às “mordidelas de bicho, desses tão nocturnos que nunca ninguém esteve desperto para os testemunhar”. Esse elemento “pedra”, dada sua primordialidade, presentifica o próprio Moçambique de Mia Couto - rota desses itinerários de colonização, o cruzar de caminhos.

Ao voltar para os dois primeiros percursos de leitura - mais à superfície - encontraremos com o mesmo tipo de pacto que sustenta o mal-entendido em “Mana Celulina, a esferográfida”. Naquele conto é a gravidez de Celulina com o irmão que é encoberta pela acusação a Ervaristo Quase, aqui é a gravidez da própria mãe de Maria Pedra, gravidez certamente fruto de uma relação externa ao casamento encoberta pelos acessos de possessão da filha:

“- Venha, minha filha. Volte a casa.
 - Agora não posso - respondeu Maria Pedra.
 Uma tremura na voz? A miúda chorava. Seria dessas inventadas mágoas, dessas que ela criava apenas para se sentir existente?
 - Venha, traga essas roupas, antes que a aldeia acorde.
 A mãe puxou pelos panos que nela se enrodilhavam. A moça resistiu, as duas mulheres se disputaram com violência, até que se envolveram corpo contra corpo. Houve rasgo e unha: já sangue escorria pelas pernas da mãe. Foi quando se descortinou, por entre o emaranhado das roupas, o corpo de um menino, recém-nado. E o choro inaugural de um novo habitante.
 A mãe ficou anichando o recém-nascido no ofegante ventre. As duas deitadas, lado a lado, alongaram o silêncio.
 - Esse filho é seu, Maria Pedra!
 - Sossegue, mãe. Eu digo que é meu.” (p.87-88) 


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>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.

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