Birdman ou as dinâmicas da aceitação

Por Cesar Kiraly



Não é fácil aceitar uma piada. Uma piada, para ter que ser aceita, precisa fazer doer. Se não dói é porque não convocou, então a sua presença é indiferente. Há o piadista inofensivo, cujas graças não costumam passar pela aceitação de ninguém. Este opera por intervenções, aclara um sentido, força um trocadilho, e, como todos, tudo o que ele quer é ser aceito. Mas qual a diferença entre este e aquele, cuja piada é difícil de aceitar? Ora, este que quer apenas ser aceito, pouco se importa com a piada, tudo o que ele quer, bem, é ser aceito; se fosse uma negociação, mediante o recebimento da aceitação que deseja, ele prontamente largaria a piada. O outro não, e este é que é o problema, posto querer ser aceito com a piada. Ele quer ser aceito, a piada é parte de quem ele é, e, numa negociação, não sairá vivo, se tiver que largá-la.

Pode-se dizer mais sobre o inofensivo, mas o deixemos de lado. Não é fácil aceitar uma piada. No caso por nós escolhido para dedicar atenção, aceitar uma piada é como levar um soco. Não sei se o leitor já levou um soco. Trocar socos é mole. Mas levar um soco, não. Claro, melhor é viver numa circunstância de civilização em que levar um soco não seja uma possibilidade, em que todos retribuam com 'sem querer' diante da nossa dor. Ainda que um mundo de estratagemas pacíficos possa ter algo de perverso, pois certo que estaríamos melhor nele. Pelo menos muito melhor do que num mundo de homens honrados que enfrentam seus problemas com os punhos.

Esta experiência de aceitar uma piada ou de levar um soco, remete aos momentos finais da infância. Por um lado porque tudo remete à infância, todavia, especificamente, é nela que as dinâmicas de aceitação se iniciam. Elas são um pouco, de modo vulgar, como para Hobbes é o estado de natureza. Cada um usa o que tem para ser aceito. A maioria das pessoas consegue aceitação de modo pacífico, empregando moedas que receberam como aparência, família, ou mais tarde, como renda e interesses, sem piadas ou murros. Mas se pensamos um pouco melhor, uma parte da aceitação sem conflitos pode ser tributada à mera conivência (silenciosa ou operante) com relação a nós mesmo, ou a quem criamos, como filhos, diante de fatores como piadas ou socos.

As piadas são sofisticadas, tendo muitos elementos compartilhados com a caça, elas podem realçar alguma característica física, buscar algum trocadilho com o nome, imputar conduta imoral a alguém ou a ente da família, pode realçar diferenças econômicas, culturais, religiosas, regionais etc. O espectro de possibilidade não é muito amplo e até mesmo proteger os mais vulneráveis pode ser uma forma de se imunizar. Fazer graça não é suficiente para caracterizar a piada, ela precisa, como dissemos, ter um alvo. Uma piada é uma boa forma de revidar a um soco: não é raro que se revide a uma piada com um soco: mas o que é mais justo é responder piadas com outras piadas. Por certo que os socos e as piadas podem redundar em boicotes por parte de suas vítimas: não se fala sobre, não se aceita o que pede; mas isso é outro problema.

Se dizemos que aceitar uma piada pode ser comparado a fazê-lo a um soco, mutatis mutandis; claro, então queremos indicar que aceitar uma piada é deixar o inchaço ir embora, sem fazer muita coisa para dele se vingar. Pode-se sempre fingir não se importar – para que os mais fracos não sintam cheiro de sangue –, fazer graça de si mesmo, para despotencializar o ocorrido etc. Mas essas respostas nada mais são do que colocar o cabelo na frente do rosto para esconder o roxo dos socos, constituem descarregamento da frustração de se ter sido esmurrado. Revidar pode ser uma alternativa, enfrentar o valentão ou o escarnecedor, mas o risco de ciclo vicioso pode ser cruel e transformar o vingador num socador ou num piadista. De tal forma que todos os dias passarão a ser vividos como um duelo mexicano, na busca paranoica da fonte de alguma ofensa.

No mais das vezes o que nos resta é a frustração e o sofrimento. E é isso mesmo. E é só isso mesmo. A maturidade tende a limitar a troca de socos, donde um piadista que se mantiver no ofício, pode contar os anos de infância a seu favor nos enfrentamentos por vir. Nada como uma infância parcialmente vulnerável para fazer um adulto protegido? Mas o que nos reúne é o fato de que os socos e as piadas que nos atingem, em cheio ou resvalo, marcarão nosso corpo e farão parte do modo como compreenderemos e veremos a nós mesmos e a nossos corpos; provavelmente as piadas muito mais do que os socos, uma vez que a exibição de algumas moderadas cicatrizes é mais passível de orgulho do que as inseguranças. O que nos resta? Sofrer e tentar fazer o peso que carregaremos o mais leve que pudermos.

Donde a luz fica mais escura. Pois aceitar uma piada é, também, poder aceitar uma piada, ter estrutura para deixar o impacto fazer parte de si mesmo, mesmo quando a estratégia é ignorar: posto que é fazê-lo com relação a algo, eis a marca. Não são incomuns as pessoas cujas inseguranças patológicas são disparadas por piadas. Elas estão nas origens, solidária a outros fatores, de magrezas excessivas e mórbidas, bem como obesidades, e mutilações do corpo, socialmente incorporadas como plásticas nos seios e nariz, ou não. Podemos dizer que essas patologias já estavam lá, num esforço de nos livrarmos de alguma culpa, mas é mais honesto admitir que há alguma relação, uma vez que a imagem, pessoal, inclusive, é social, ou, no mínimo, que a piada não ajuda. Ou, se ajudar, será como escola de natação russa em água gelada, em que a criança precisa aprender todos os estilos em cinco segundos, senão morre afogada.

Birdman é um filme em que os traços sem resolução da infância são trazidos ao proscênio. Afinal o personagem principal é um pouco parecido com todo mundo, mas ainda assim ninguém é tão bobo. É possível que ainda sabedores de que não voaríamos, tenhamos nos lançado de alguma janela de não significativa altura. Em algum momento paramos com isso. Will Eisner com o A História de Gerhard Shnobble, de 1948, em pouco mais de cinco páginas nos dá a natureza da rejeição e torna o filme de Alejandro Gonzalez um natimorto ou apenas um pretexto para que possamos discutir o que ele erra. O que diz Eisner na grafic novel a que nos referimos? Basicamente que ainda que haja um homem que sabe voar, pouco importa, porque ele morrerá antes que a humanidade possa saber dele. Afirmação que poderia ser dita ainda de outra forma: pouco importa que você saiba voar, pois não se é rejeitado por alguma coisa especial ou ruim de que se é portador, mas porque a rejeição é tudo o que há para nós. Isso deve servir para mostrar a insanidade de todos que apenas desejam fazer parte dos clubes que não o aceitam como sócio, como diria Marx. E componente da frustração deste diante de T.S. Eliot, que só admirava o palhaço e não o homem. Porque ser aceito é o que de mais improvável pode acontecer. Dois ou três sins já fazem uma vida assaz bem recebida.

Para humanizarmos o argumento, deixe eu falar um pouco de mim. Eu mesmo me considero um piadista em reabilitação. Por evidente que fui vítima de piadas e rejeições que compõem minha imagem emocional e corporal, como acontece com todo mundo. Sempre troquei muito socos e piadas. Com a maturidade os socos me abandonaram e a diversidade de contatos me fizeram perceber o excesso da minha disponibilidade (ativa e passiva) à agressão espirituosa. Não quero dizer a naturalidade do dito espirituoso como forma do equilíbrio psíquico, como se refere Freud, mas o excesso. Em família éramos todos piadistas no sentido grave, donde que se nos reuníssemos estávamos em um clube da luta em que todos sabem acertar com uma piada, porque por sua aridez foram forjados. A última foi cantar o hino da marinha do Brasil em canto coral para o irmão apavorado por ter sido obrigado a servir. Outras pessoas me fizeram perceber tal excesso. Tal como acontece a toda pessoa em rehab, não há dia em que não pense o trocadilho com o sobrenome de alguém. O que a vida me ensinou? É preciso silenciar e sofrer para respeitar o outro.

O cinema norte-americano bem recebido pelo grande público é avesso à frustração. Talvez essa seja uma forma educada de dizer que é adorado por ser sem limites. A ninguém pode ser negado nada por muito tempo e o sofrimento silencioso é quase uma heresia. A estratégia nunca muda, pouco importando se são retratados grupos em que o sofrimento silencioso é inexorável, posto que representá-lo seria sutil e a histrionia é a linguagem do acerto. É imperioso passar aos socos e às piadas. Pois bem,  mesmo esse jogo do histriônico pode ser distinguido em medidas normais ou patológicas. Nem mesmo o filósofo político mais loquaz seria capaz de vislumbrar uma sociedade sem repressão, sem que nossas expectativas fossem lançadas ao chão e esmagadas de tempos em tempos. Mais ainda, mesmo uma sociedade com a americana do norte, cujo destino é estranhamente invejado por alguns setores do sul, que aprecia a moldagem histriônica dos seus desejos, diferencia as reações entre as medidas e as desmedidas.

Os massacres de adolescentes por outros adolescentes têm que ver com isso, uma resposta, por assim dizer, um tom acima da histrionia permitida, diante de uma frustração. Mas o que aconteceu, alguém poderia perguntar. Não importa! E nisso os massacres em escolas podem ser ligados ao massacre de opositores políticos na Escandinávia ou de desenhistas na França. Uma incrível revolta com o fato de que alguns mundos deixaram de existir, por mais triste que isso possa ser. Consistem em enunciados violentos contra a crueldade do mundo, no sentido da não aceitação de que seus corpos e almas sejam moldados pela humilhações reais ou fictícias que por venturam tenham sofrido. Qual é a reação correta diante da humilhação? Só uma, submeter-se a ela / encontrar alguma alavanca no campo político. Se não se conseguir voz? Fenecer mudo.

Este mesmo cinema popular é irônico acerca de sua própria histrionia diante da frustração. Atitude que pode nos levar a relativizar as supostas virtudes sem contexto da ironia. Está certo, este cinema não nos diz exatamente para nos tornarmos assassinos, mas para nos percebermos, por tempo indeterminado, como caçadores potenciais de nossos ofensores, sejam eles raptores de nossos filhos ou negadores da atenção que nos é de direito. Ele nos ensina a diferença entre realidade e ficção ao mesmo tempo em que alimenta a histrionia, não tão simpática a tais separações, uma vez que aposta na transformação para mudar tudo e prová-la certa. Este cinema que também faz ironia consigo próprio quer mostrar que também sabe aceitar um soco. Mas isso é mentira, porque só pode aceitar uma piada quem está na posição de fraqueza. Birdman, como via de regra as ironias de quem não está em posição vulnerável, nada mais é do que um pastiche. A ironia é propriedade moral do oprimido, e apenas dele, pois apenas esse assume o risco e a responsabilidade de dizer o que diz. Como é o caso da conhecida passagem em que Freud recomenda a SS a todos, depois de instado sobre como teria sido tratado pelos alemães em sua negociada mudança para a Inglaterra em 1938.

Em Birdman um ator, interpretado por Michael Keaton – outrora um bem-vindo Batman franzino e de brinquedo, imaginado por Tim Burton –, busca um novo sentido para a sua vida apostando suas fichas na montagem de uma peça na Broadway, em que atua e produz. Esta personagem, de certa forma como Keaton, houvera sido ainda mais popular interpretando Birdman. Além disso, numa forma de esquizofrenia, ele recebe conselhos deste super-herói que um dia viveu. Alguns elementos conspiram a favor e outros contra a montagem da peça: o super-herói delirado está sempre lá dizendo que aquele mundo de frustrações não é para eles, que a qualquer momento eles podem voltar a ser um herói de ficção e ter a popularidade de outrora. Ele resiste a isso e segue com a peça até o final: sob as lembranças do herói de que as pessoas querem mesmo é viver sem frustrações. Que as pessoas amam filmes de heróis, é isso o que o fantasma diz.

Parece-me que Birdman dialoga com um excelente filme também recente, no sentido de que dele faz uma versão.

Sinédoque, de 2008, primeira direção assinada pelo também roteirista Charlie Kaufman, retrata, também no contexto de Nova Iorque, a vida de um diretor de teatro que, após ser bem sucedido em uma montagem, recebe prêmio em dinheiro que o permite se dedicar a uma outra e mais vultosa. Nesta nova experiência, elementos de sua neurose, que de alguma forma o faziam genial, agravam-se, e o processo se torna mais intenso, mais difícil, mas também sem fim; de tal forma que é a própria vida do diretor que está sendo encenada, ao mesmo tempo em que acontece e é substituída, como a figura de linguagem do título nos sugere. As pessoas envelhecem e morrem, amam e desamam e tais viradas não se dão em outro lugar senão no dos personagens que as representam, mesmo em dízima, em que os personagens são representados por outros personagens. Há em Sinédoque um caminho de frustrações, a busca de algo que não se atinge, e o sacrifício de toda uma vida por um objetivo sem recompensa, além da eterna dúvida de que talvez esse movimento se dê por incapacidade ou medo de viver. Trata-se de estar frustrado e frustrar e não dar fim a isso: locupletar-se na dor.      

Birdman, no processo de viver a montagem de sua peça na Broadway, com outras personagens que passam pelo mesmo, delira, ou esconde, uma habilidade telecinética, própria de sonhos; com ela, em várias situações em que as coisas não se dão como planejado, move objetos e os lança contra a parede. Este animal que compensa suas frustrações com telecinese e planos de fuga, convence-se de que algo será melhor se for bem sucedido no teatro, e, portanto, concebe a presença de um ator especializado em seu elenco, o convidado consiste em uma figura misteriosa, cantada em prosa e verso, que existe para viver no palco. Neste, ele se embriaga, é intenso, resolve a própria impotência sexual e impõe ‘a vida’ a quem com ele contracena.

Humanize-se, humanize-se – pede o curioso leitor – e o autor concorda. Na adolescência, utilizávamos bonés com motivos de times de basquetebol norte-americano, não, nós não víamos os jogos ou nada disso. Os bonés eram caros e utilizar um que fosse falsificado era uma grande vergonha. Por essa razão dominávamos uns dez pontos para identificar uma falsificação, tais como material, números de costuras, etiquetas etc. Eram sinais sutis, uma vez que as falsificações eram aprimoradas, mas perfeitamente perceptíveis à distância por nossos depurados olhos. Por serem objetos de desejo, esses bonés eram passíveis de despertar o interesse de ladrões. Numa, saindo da escola, apercebendo-me da perseguição que sofria, deitei o boné à bolsa e apertei o passo. Mesmo assim fui alcançado. A troca de ditos espirituosos não foi suficiente e passamos à troca de socos, levei a pior e me levaram o chapéu. Pronto, frustração, raiva, choro etc. Meu pai nunca deu muita trela às minhas frustrações, mas nesse dia ele ficou indignado, colocou-nos, eu e minha mãe, no carro, e lá fomos. Resumo, depois de avistarmos os meus algozes, tivemos perseguição, saltos de automóvel em terreno baldio, cerco a um dos malfeitores, entrega dele à política, confissão, mais prisões e a desmontagem de uma rede de receptação e venda de bonés roubados. Nunca mais a frustração foi tão bem exumada em minha vida.

Uma figura presente em Birdman e ausente em Sinédoque – e que poderia fazer toda a diferença no ciclo de sofrimento e genialidade do segundo – é a do crítico. Ele representa a frustração. Não seria demais lembrarmos de outros críticos do cinema recente, mas fiquemos com o mais elaborado deles, Anton Ego, no longa de animação Ratatouille. O tipo ideal? O crítico é isolado, tímido, sempre carrega cadernos de notas, é mal-humorado e supostamente influencia multidões com o seu gosto. A crítica em Birdman está sempre sentada sozinha a um balcão e altinha. Ela parece se valer de meios não ortodoxos para atribuir boas críticas, mas, sobretudo, reserva-se o direito de ser imprevisível. Ela e o verdadeiro ator de teatro passam a significar a frustração, e o equilíbrio dessa por uma dose prudente de descontrole, em oposição a incompreensão acerca do mundo e a completa loucura. Quando tudo está perdido, Birdman, por um acidente, marcha de roupas de baixo expostas diante de um sem número de pessoas, é reconhecido, e adquire algum poder por tal exposição, como diz sua filha. Se ele se fragiliza ao se tornar verdadeiro diante da crítica, nada mais faz do que se bater contra uma parede dura, que diz: - não, não vou tomar com você. Não há nada que possa fazer que me faça gostar de você, e para entrar aqui, precisa passar por mim. Esta parede de frustração, para um espírito infantil, empurra à beira do suicídio.

Birdman é um filme ruim que alegoriza o ridículo espiral de decadência com que lidam os nossos dominadores culturais quando confrontados com a frustração. Ao mesmo tempo concerne a exportação de um modelo suicida de lidar com o não, o que foi chamado de hiper-realismo. Não é fácil aceitar uma piada ou um soco. Mas é melhor levar ao desespero pela crítica do que aceitar a tosca saída suicida. Ah, a beleza trágica de quando temos uma certeza de que nada poderá dobrar o nosso espírito: que os escarnecedores arranquem os olhos uns dos outros. Afinal, um dromedário não é um camelo. Mas o melhor de tudo, era simplesmente não ter na piada um sentido, tal como alguns são cegos para certos tons de azul.

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Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e do IUPERJ. Além disso é autor de livros de poesia e de ensaios. Edita, com Pedro Fernandes, o caderno-revista de poesia 7faces.

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