Daniel Mordzinski e a construção de um atlas humano da literatura

A já clássica imagem de Jorge Luís Borges, por Daniel Mordzinski, um de seus primeiros trabalhos.


Click... Click... e quando Javier Cercas se dá conta está no meio de sua piscina portátil em Gerona, com a água ao redor de si, lendo um Hamlet. Foi para um único fotógrafo que o escritor quis posar dessa maneira. E, assim, Daniel Mordzinski terá produzido mais uma galeria de imagens para uma coleção que tem pelo menos quarenta anos. O autor de Soldados de Salamina não supõe em qual momento o fotógrafo argentino o embarcou e fez com que ele sozinho se metesse numa piscina entre sorrisos e piadas. “Mordzinski tem a vantagem de ser muito cordial”, relembrou o escritor na ocasião, “sua conversa flui de maneira natural sobre literatura e outras coisas. Ele não força a nada e quando dás conta estás em pose para fotografias impensáveis”.

A fotografias literárias. A retratos que complementam a vida do escritor e sua obra. As imagens que são ponto de partida ou final de uma história por contar onde o escritor é o protagonista. Poetas, romancistas e ensaístas espanhóis, portugueses e latino-americanos que têm construído parte da história da literatura das últimas três décadas estão, em sua casa ou na rua, vestidos ou nus, mas sempre descobrindo-se a si próprios, no acervo do fotógrafo.

Mordzinski não recorda o momento exato quando começou este projeto fotoliterário. Sabe que foi em Buenos Aires, a cidade onde nasceu e se formou literária e sentimentalmente. “Dava meus primeiros passos para o cinema e revia à rodagem que ia fazer sobre Borges em San Telmo; fiz uma série de fotos que durante algum tempo não soube interpretar. Um dia revi meu trabalho e descobri que tinha uma pista para dar nesse caminho cúmplice com a literatura. Eram então três paixões que lutavam por meu coração: a fotografia, o cinema e a literatura. Mas o que sempre havia gostado de fazer era cinema. Convenhamos então que a fotografia foi o fruto de uma noite de amor entre o azar e a necessidade”, explica-se.



O resultado: um paraíso ou um universo de escritores. Jorge Amado sentado e despojado com seus chinelos de praia; Álvaro Mutis numa praia à sombra de uma pedra; Roberto Bolaño, quase mimetizado entre a vegetação; José Saramago a contemplar o horizonte; Agustina Bessa-Luís diante do espelho; Gabriel García Márquez, de pé, sobre umas rochas e visto de baixo para cima com um farol que aparece ao fundo da imagem; Ana María Matute sentada num salão iluminado pela luz que se filtra pelas frestas da persiana. Imagens de escritores que, como diz Mario Vargas Llosa, um dos já fotografados por Mordzinski, “são na verdade uma interpretação profunda e respeitosa de sua personalidade tal como aparece refletida em suas características, semblante e expressões”.

A cumplicidade que estabelece com os autores se deve, em parte, ao que o fotógrafo lê nas obras de seus fotografados. Ali está parte do poder de sedução do argentino, capaz de convencer a si próprio a colocar-se na tarefa lúdica de registrar a existência. A imagem do outro deve falar muito dele próprio; de sua posição de leitor. O próprio diz que seu trabalho tenta “alcançar o espaço livre, o estado de graça em que é possível fazer uma boa foto e não um clássico retrato de compromisso. Se em meu trabalho há uma compensação é que as fotos têm uma dimensão pessoal. Proponho uma aventura divertida, rápida, respeitosa, digna e segura”. Funde-se obra-autor-fotógrafo-interpretação.

A extensa galeria de imagens já captadas por Mordzinski é produto do respeito que os escritores têm para com seu trabalho. Durante todos esses anos seu método se fez célebre entre eles. Também sabem que estão frente a um homem que não vai registrar sua imagem de qualquer forma apenas para ilustrar o texto de um jornalista. Estão, sobretudo, ante um homem culto e sensível, que conhece a obra de seus fotografados e que não apenas leu as contracapas dos livros para uma conversa ocasional. O argentino dedica-se profundamente àquilo que tem como um trabalho sério. Futuramente ficará ao alcance das gerações futuras o que poderíamos designar como um “atlas humano” da literatura.



Mas, dediquemos a atenção para uma das peças mais destacadas no ambicioso projeto de Mordzinski que é o conjunto de imagens de Gabriel García Márquez, reunidas, na língua do escritor, num único livro-homenagem. Essas fotografias são notáveis por si mesmas e também pela natureza esquiva do Prêmio Nobel de Literatura colombiano, sempre desinteressado em compartilhar publicamente sua intimidade. O álbum ora publicado traz imagens não apenas do autor de Cem anos de solidão, mas das pessoas que lhe foram mais próximas, como familiares, jornalistas, artistas e outros escritores que num ou noutro momento tiveram com ele uma relação especial.

Mas, como foi o primeiro encontro entre Mordzinski e García Márquez? Santiago Gamboa nesse livro reconta a história sobre essa aproximação. A oportunidade se deu em Biarritz pouco depois do prolífico ano de 1995. Na ocasião se celebraria durante uma semana a literatura colombiana. Entre os convidados estavam Álvaro Mutis e García Márquez que pediu para mantê-lo fora da agenda do evento. Queria apenas acompanhar o amigo Mutis, mas nada de apresentações, nem autógrafos, nem de entrevistas.

Bem, Daniel foi convencido por via indireta ao evento com a promessa de aproximar-se a García Márquez. O fotógrafo estava em Paris e viajou a Biarritz no dia 23 de setembro daquele ano. Ao chegar ao evento, ao invés de ir de quarto em quarto à procura de outros escritores, ele resolveu esperar no hotel, claro, na expectativa de um contato com o escritor colombiano. E deu certo. “Sou García Márquez, Plinio me disse que lhe chamou para umas fotos”. Do lado de cá do telefone, Mordzinski esforçava-se para não deixar transparecer a emoção do contato; saudou-o e agradeceu-o pelo interesse. García Márquez, entretanto, previu o nervosismo do fotógrafo e perguntou como ele queria que se vestisse – “com gravata ou sem gravata?”. “Esta manhã saí para caminhar pela praia, estive olhando o mar e pensei no Caribe e em Cartagena de Índias... Sem gravata”, respondeu.

Marcou-se o encontrado para o meio-dia do dia seguinte. E, pouco antes, pelas dez horas da manhã já estava combinado com Álvaro Mutis na mesma praia. Mas, o escritor já era conhecido do fotógrafo há alguns anos. E assim viu-se em meio a uma coincidência única: ter à frente do mesmo mar dois dos maiores escritores latino-americanos e que era grandes amigos.

Depois desse encontro vieram outros. E outras sessões de fotos. A mais recente, dois anos antes morte de Márquez em 2014.

Ligações a esta post:
No Tumblr do Letras publicamos algumas galerias com as imagens mencionadas nesta post e outras de Daniel Mordzinski. Podem ver aqui.

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