Os caminhos de Isaías ou três voltas sobre o mesmo parafuso (Parte III)

Por Alfredo Monte

Lima Barreto em retrato feito após a segunda internação no 
Hospício Nacional dos Alienados em 1919.



3. A Confissão (O romance)

Désespéré de ce qu´il sait et ne peut plus annuler, mais fidèle malgré tout au Don Quichotte intransigeant qui lui dicte son ideal, il va rester écartelé entre deux exigences incompatibles et également impérieuses, l´une, utopique, qui l´entraîne irrésistiblement dans l´irresponsabilité de la rêverie; l´autre, realiste qui le contraint à regarder de tous ses yeux du côté des choses ´positives´ les plus propres à soulever en lui angoisse, mépris haineux, rage, dégoût...
Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman

A má vontade geral, a excomunhão dos outros, tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e força. Rebaixara-me tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império...
Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha

No sexto capítulo, o peso colocado na escritura do romance, que aparta Isaías da vida comum e passa a ser o último refúgio do Orgulho, faz pressentir a persistência do Enjeitado (enfant trouvé), para utilizar a expressiva terminologia de Marthe Robert, que caracteriza desse modo o tipo criador preso ainda ao estágio pré-edipiano, ao narcisismo infantil. Mas Recordações... também é a história de um arrivismo fracassado, de um “nascimento vergonhoso e no entanto motivo de orgulho”1, que precisa ser legitimado diante da sociedade por meio de uma trajetória campeã, o que caracterizaria mais o Bastardo (em verdade, a própria condição de Isaías na vida social, como mulato, é bastarda, fruto de um casamento “desigual”), assim como a rejeição já edipiana de diversos “pais” (como Laje da Silva, Loberant); por último, existe o impulso criador que imita o pai, sempre mantido como imagem absoluta e fantasmática2.

Mas é justamente (e paradoxalmente) o ato criador—escrever—que imita o ato geracional do pai, o elemento psicológico segundo o qual Isaías retrocede ao Enjeitado, o que sempre foi uma de suas tentações ao longo de toda a narrativa3, diante do peso esmagador da realidade adversa que faz seu primeiro projeto, napoleônico, esboroar-se (ele agora abraça o projeto quixotesco de corrigir os costumes). E não podemos esquecer a morte do filho, que aniquila o ato criador de Isaías dentro do estágio da sexualidade (e portanto do plano edipiano onde opera o Bastardo). Ele, então, retorna à condição psicológica de “filho” e volta-se para a escrita (trabalho noturno que substitui a atividade sexual), a qual primeiro ele utilizou “bastardamente” como jornalista de O Globo e a seguir como escrivão, e que à noitinha passa a ser o seu veículo mais íntimo, válvula de escapa da libido em regressão.

Daí a confissão, a forma ficcional que utiliza e que também lhe serve como instrumento de represália: faz sua autobiografia, dando-se um nascimento, e criando um “ritual noturno” que se transforma numa luta em que os pesos estão desequilibrados devido ao “lirismo” (ainda no sentido lukácsiano)4, problematizando o livro enquanto “romance”. Explicando melhor: a confissão, que geralmente é a história mental de um personagem (Frye), e forneceria a base do romance de formação, se desequilibra e se fratura porque no fundo o narrador está se valendo de outra forma ficcional (descrita por Frye como “enciclopédica”), a anatomia5. Mesmo esvaziada do seu conteúdo fantástico original, tal forma (e assim o “ritual noturno” da escrita realmente se aproxima do sono da razão) hipertrofia a tendência caricaturesca de Recordações..., mesmo que o narrador aparente manter o decoro realista-naturalista na superfície.

Como o relato é represália, Isaías utiliza os caracteres humanos que conheceu como um enciclopedista que coleciona verbetes, num “simpósio” antitético no qual, no plano do vivido, apresenta-se como observador passivo, vítima e joguete; no plano criador, o demiurgo que os encaixa nos seus ritos de passagem e momentos iniciáticos, acentuando todos os seus aspectos monstruosos6. A duras penas, porque ele se sente, nesse processo, como uma “mulher pública” (o que denuncia o lado “embaraçoso”, vergonhoso mesmo, do seu ritual noturno).

Em seus caminhos, Isaías perdeu rapidamente a possibilidade (um dos elementos da equação épica — o outro é a necessidade) de desvarios romanescos do tipo napoleônico (Julien Sorel, Rastignac)... Está mais para Emma Bovary. Por isso, pode muito bem ritualizar a sua má consciência (fazendo o seu número de “mulher perdida”) de ser “especial”, de ser “diferente”, numa atividade noturna inconfessável (apesar de ser uma confissão).

Se não me perdi no caminho, concluo então que é o ato de escrever que caracteriza a ilha do Enjeitado em Recordações... E sua luta como Crusoé nessa ilha é com a matéria que escreve, a qual representa o mundo onde atuou como Bastardo. Por isso seu romance representa sua má consciência (que se junta ao solipsismo deliberado de que nos fala Marthe Robert) porque ele reassume a diferença e o sentimento de superioridade que sentia com relação às pessoas do seu lar (à exceção do seu fantasmático pai), e aí que pode se afastar de seu avatar de escrivão, que é ainda seu avatar Bastardo (e que continuará a atuar, como indica o Pós-escrito à “Breve notícia”), enquanto o escritor de um livro noturno (e que é a sua necessidade, aquele outro polo da equação épica, aqui rearranjado e desalinhavada pelo lirismo) é o seu avatar Enjeitado.

Balzac tornado Flaubert, quase Kafka...

Conclusão

Procurei demonstrar através da leitura dos caminhos de Isaías Caminha como o “lirismo” (na acepção lukácsiana) acentua-se num romance da fatura realista-naturalista, ressaltando o hibridismo das formas ficcionais presentes no romance.

Tentei mostrar também como isso acompanha um processo em que toda a estrutura social externa ao herói passa a ser uma vasta imagem demoníaca (rompida vez em quando por acenos da natureza, colocada num plano secundário, como um contracanto dissonante), o que constrange, confina e distorce o que Lukács chama de “problema épico fundamental”: necessidade e possibilidade de ação por parte do herói.

Os indivíduos marginalizados nesse processo criam seus próprios avatares compensatórios, em que vivem o avesso da vida, ou então como narradores que vão do confissional (formativo) ao anatômico (enciclopédico e pseudo-totalizante), surgindo então um processo paralelo, introvertido e mesmo intelectualizado, que parece seguir os ditames diurnos da racionalidade e organização da experiência (sempre medida no campo edipiano, da sexualidade formada), contudo também correspondendo aos apelos noturnos do narcisismo pré-edipiano.

Espero, dessa forma, ter encontrado para a análise do livro de Lima Barreto uma síntese coerente do psicanalítico, do sociológico e do campo formal.

Notas:

1 “La naissance mystérieuse de l´Enfant trouvé ne lui était en cela d´aucune utilité, mais sitôt qu´il l´échange contre la naissance honteuse et glorieuse du Bâtard—gloire et honte ici ne font qu´un, l´une confirme l´autre—, il intervient en personne dans le processus intime de l´engendrement...” (cf. Roman des origines et origines du roman)

Note-se que não estou me valendo da instância biográfica, que ligaria Isaías a Lima Barreto. Não é o terreno da minha leitura, totalmente voltada para motivos formais e conteudísticos, e não os intencionais (a não ser do personagem).

2 “...il relègue son père dans un royaume de fantaisie, dans um au-delà de la famille qui a le sens d´un hommage et plus encore d´un exil...”

Curiosamente, Isaías coloca o pai num plano ascético totalmente disparatado com relação à existência da mãe, o que torna seu nascimento realmente um deslize que ele precisa legitimar enquanto criador—ou seja, ele precisa justificar sua existência.

Outro aspecto interessante: a atitude de Isaías com a esposa. Parece muito com a que mantinha com a mãe.

3 Basta observar o seu trato com as mulheres e suas reflexões sobre o ato sexual (que têm algo de enojado e punitivo).

4 Assim, a “apreensão” do Rio de Janeiro, sempre um dos grandes fascínios da obra de Lima Barreto, é dada pelo viés de um estado d´alma de Isaías, o que, a meu ver, confirma plenamente as seguintes afirmações de Benjamin: “As descrições reveladoras da cidade grande (...) procedem daqueles que, por assim dizer, atravessam a cidade distraídos, perdidos em pensamentos ou preocupações”. O autor de Um lírico no auge do capitalismo nos dá Dickens como exemplo desse transeunte não-observador (mas que entretanto revela a cidade), e cita Chesterton, o qual escreveu o seguinte sobre o grande vitoriano: “Quando concluía o trabalho, não lhe restava senão andar à solta, e então vagava por meia Londres. Quando criança, foi um sonhador; seu triste destino o preocupava mais que o resto (...) Dickens não recolhia em seu espírito a impressão das coisas; seria mais exato dizer que era ele quem imprimia o seu espírito nas coisas” (grifo meu). Seria preciso lembrar também que em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá há aquele maravilhoso capítulo chamado “O passeador”?

5 Diga-se de passagem, me parece que o desenvolvimento da obra de Lima Barreto registra crescente tendência enciclopédica. Lanço a sugestão, já que não é possível desenvolver a ideia, aqui.

6 A “deformação” decorrente da presença da anatomia enquanto processo literário em Recordações... pode ser exemplificada pela caracterização de Raul Gusmão, cuja fala era um “espumar de sons ou gritos de um antropoide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada”; mais adiante, o narrador chamá-lo-á de “pithecanthropus literato”. Não é como se um naturalista fizesse a descrição e classificação de espécimes?

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