O que é ser humano?

Por Pedro Fernandes

Imagem: Mette Colberg


Há alguns dias a mídia televisiva veiculou duas reportagens que davam contas de dois fatos ocorridos em diferentes estados e regiões do Brasil, mas que tinha em seu conteúdo o mesmo sentido. Acho difícil que os tais fatos nos venham causar algum choque, quando muito, um sentimento agora comum denominado indignação, porque aquele sentimento da sensibilidade, com esses dias nebulosos, sangrentos e virulentos que tem assolado a humanidade desde que o homem olhou para outro homem e se reconheceu enquanto tal, anda a cair em desuso ou a criar uma couraça, desabrigando-se do ser humano para dar lugar a este que qualquer outra coisa próximo ao animalesco. 

A indignação pura e simples carrega em si o mesmo grau de violência que uma bomba sob o Japão no fim da Segunda Grande Guerra e mesmo que não cause vítimas fatais – vale ressaltar que algumas delas ainda causam – ela é o combustível que move a criação de artefatos explosivos que podem machucar muitas pessoas. Mas voltemos aos dois episódios mostrados pelo telejornal. 

No primeiro, se apresentavam as filmagens feitas no embarque de uma estação de trens no Rio de Janeiro, sudeste do Brasil. Associado ou não às condições caóticas do transporte público – fato comum nos grandes centros do país – que se agravaram com uma greve de maquinistas, o que o telespectador encontrava era com vários indivíduos armados de punho, outros de ligas sob forma de chicote, a dispararem socos e chicotadas contra passageiros. 

A segunda matéria apresentava uma empregada doméstica do Recife, região nordeste do país, em depoimento acerca das agressões sofridas pela síndica de um condomínio; a trabalhadora não estava usando o elevador de serviço do prédio. 

Tudo isso seria novidade se fossem esses episódios os primeiros de violência a se registrar entre os humanos. Entretanto, isso não é verdade e qualquer livro de História, desde aquele a que se convencionou sagrado entre os cristãos, a Bíblia, àqueles mais simples, como os que são didáticos para o ensino fundamental e médio, o que se registra é um verdadeiro rosário de crueldades de humanos para com humanos. E, desde os primórdios, parece que o que fizemos foi aperfeiçoar maneiras e técnicas de crueldade. 

Começando pelos conflitos da mitologia cristã, como os do mito Caim e Abel, em que um matou o outro movido pela inveja e passando à série de dizimações registradas no correr dos livros “sagrados”; começando pelos conflitos entre civilizações e passando aos dois grandes e mais conhecidos enfrentamentos da Era Moderna, as Guerras Mundiais, com destaque à segunda em que o mundo assistiu à dizimação em massa de seres; chegando aqueles modos outros de fazer confusão, os mais conhecidos entre nós, como os bate-bocas que acometem em filas de banco, no trânsito, em casa ou ainda as panturras de corrupção dentro dos conclaves políticos com o dinheiro público, que são a forma de violência humana para com humanos das mais corriqueiras porque tanto cerceia as vidas quanto a qualidade de muitas delas com os cortes de verbas em saúde e educação ou com as crises econômicas; e chegando a muitos outros episódios que devem estar agora ocorrer ponta a ponta o cérebro dos leitores e que não cabem neste espaço; e pergunto: o que é ser humano? 

Cada leitor pode tirar suas próprias conclusões, mas entendo que a linha que separa o humano que somos e o bicho que deixamos de ser é bastante tênue, por vezes inexistente. Penso que todos estes episódios – os citados e os não citados, os que ocorreram há alguns dias e os que ocorreram há alguns séculos, os que se passaram em casa ou na rua, nas repartições privadas ou públicas –, são provas mais que suficientes de que o conceito que temos de ser humano carece urgentemente de uma atenção. porque do jeito que a coisa anda não sei se ainda poderemos continuar a usá-lo para nos definir.


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